Salvador Dalí: Sentimento |
Aqui do alto, o Outro que é em mim
continua a observar e sequer sabe como ou porque a maioria do que se passa no
magikaos cotidiano de Bellhell acontece. Nos menores detalhes do dia-a-noite
estão as coisas que mais nos assombram/alumiam e, do nada (que também é tudo),
voltamos a aprender com o que de mais simples testemunhamos.
Da sacada do apartamento, trilha sonora de
fundo o rugido dos dragões/caminhões laranja que mastigam e devoram o lixo da
cidade inteira, o forte vento leste traz o odor de sobras, que acaba depois
suplantado pelo cheiro da chuva, anunciada no cinza-chumbo do lindo céu de mais
um fim de tarde. É quando um outro som me chama atenção e faz olhar para baixo.
As gargalhadas e gritos vem das crianças
que brincam e correm no pequeno e colorido labirinto de brinquedos do parquinho
que foi construído próximo ao muro nos limites do condomínio. O grupo nem é tão
grande assim, mas a algazarra que fazem é considerável, se querem saber.
Correm, pulam, escorregam e caem por todos os lados, enquanto as mães, ocupadas
demais com seus smartphones, delegam a vigília às babás.
Mesmo sob o olhar atento das
"nanas", escapa uma cena que me parece um triste reflexo dos tempos
conturbados e extremos em que vivemos. Toda vez que uma linda menininha negra,
de tranças presas no alto da cabeça em um coque afro, tenta brincar com as
outras crianças, elas correm para longe dela aos risos. Isso acontece umas duas
ou três vezes, até que ela para de tentar e senta sozinha em um balanço.
Os adultos presentes ou não ligam para o
que veem ou dão risada, como se aquilo não passasse de mais uma brincadeira à
toa, coisa de criança, sabe como é?! Me pergunto se
somos mesmo cruéis desde pequenos ou apenas replicamos comportamentos
destrutivos de forma inata? Se somos a imagem e semelhança Dele, vai por mim, é
do Velho Testamento que estamos falando, meu chapa!
Sem saber o que fazer enquanto presencio a
cena, sinto vontade de dizer-lhe que vai ficar tudo bem, que as coisas vão
melhorar, mas já não tenho certeza disso há muito. São tempos sombrios e
perigosos para os que ainda tem fé na humanidade. Estamos imersos demais nesse
turbilhão de ódio, confusão, lema dos dias: cada um por si e todos contra
todos.
A chuva começa a cair. O som das gotas
atingindo os telhados começa a aumentar trazendo uma espécie de urro ritmado.
Será o vento somado ao som dos trovões? Parecem... atabaques... Todas as crianças,
mães e babás correm para se abrigar, menos a linda garotinha negra. Ela olha
para o céu e sorri. Sente que está sendo abraçada, acolhida.
Nossos olhares se encontram e depois ela
desvia novamente para os céus. Fico curioso e levanto também meu olhar. O que
são aquelas nuvens brancas misturadas às nuvens de chuva? A luz do Sol começa a
atravessar, um relâmpago clareia tudo e ela surge. Chame como quiser: Gaia,
Iansä, Deus-mulher.
Lembro... do... futuro...? Mas lembrar é só o passado? Isso é sonhar ou delirar? Vai saber! Turbilhão de imagens, plano-sequência. Ela não mais é menina e sim jovem mulher de longos cachos ao vento. Lutas, amores, decepções, alegrias, mais lutas e multidões. Faculdade de Direito - direitos humanos para humanos esquerdos?! - choque de frente com a tropa.
Punho cerrado, palavras na desordem. Mais
um estudante caiu e continua presente. Política de poucos a oprimir muitos.
Estampidos e gritos. Balas de borracha, que apagam vidas e sonhos - mas “não
desiste, preta, não desiste!” - se Martin teve um, temos em nós todos os sonhos
do mundo!
Outro trovão me traz de volta. O céu está
abrindo, mas a chuva continua batendo de frente, mal notei que havia me
molhado. Lá embaixo ela continua a correr e brincar, se molhar faz mesmo um bem
danado. Há uma mulher com ela ou é impressão minha? As duas cirandam de mãos
dadas enquanto a água continua a cair. Meus olhos cheios d'água. Será da chuva?
Sonho e kaos sempre de mãos dadas...
"Ridiculamente" inspirador. Hahahaha, belo texto cara! Muito grato por ter lido.
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