Tuesday, September 18, 2018

A injustiça que os cega

Pietá - Emeric Marcier

Nem bem raiou o dia e Bellhell já é uma balbúrdia hostil ao recém desperto, como eu. Berra mecanicamente o despertador, uivam os caminhões de lixo do estacionamento aqui atrás, com suas buzinas de ré ou coisa que o valha e as crianças que chegam à escola aqui em frente ao prédio, gritando e dando risadas (como podem ser tão barulhentas a esta hora da manhã?!).

O nada tênue amarelo do sol matutino que invade o quarto pela janela, ignorando as cortinas blackout, é particularmente torturante para minha hipersensibilidade à luz. Posso soar neurótico – da guerra do existir/resistir no dia após dia –, mas nunca confiei em alguém que é feliz antes das oito da manhã, me julguem.

Já no elevador, ainda letárgico pelo efeito da Areia dos sonhos – Sandman não me trouxe um sonho esta noite –, meu olfato é agredido por um perfume forte que não identifico (nem pretendo), e que causa uma revolução armada em meu estômago ainda vazio. Todos os “bons dias” que recebo pelo caminho, seja do morador que desceu comigo pelo elevador, do porteiro ou da senhora da limpeza que cruzou meu caminho, são respondidos no modo “autômato ad eterno”.

As filas de carros a perder de vista do trânsito na Marquês são a melhor representação do comportamento de “efeito manada” que configura nosso cotidiano no século XXI. Mas há algo de errado na frente da padaria, que deixa parado o rebanho mecânico: viatura da polícia, carro da imprensa, multidão arrebanhada ao redor.

O grito de dor sobrenatural daquela mulher – rasga mortalha da realidade – interrompe o fluxo real do tempo. Cena que desperta fúria e lamúria paralelamente. Abraçada ao menino caído, cercada pelos agentes da lei, que vestem uniformes de batalha e usam as armas do cidadão de bem para fazerem o que bem entendem, mais uma mãe terá que contrariar o fluxo natural da vida.  A senhora deve ser mesmo cega, dona Justiça.

Link ao vivo do repórter para explicar o quê não faz sentido. Pessoas ao redor filmam tudo com o olhar de abutre sedento das câmeras dos smartphones e proferem as mesmas falas de sempre: “Não devia ser coisa que prestasse esse aí”, “Um bandido a menos”, “Da baixada nunca saiu nenhum santo”. Quando ouço tudo aquilo, só consigo pensar que já te pedimos piedade, Senhor, mas as pessoas continuam caretas e cada vez mais covardes.

Enquanto revistam a mochila do garoto, que estava no lugar e hora errados, que correu quando foi ordenado que parasse, e cometeu o imperdoável crime de nascer preto e pobre, encontraram as únicas armas que podem salvar esse país da marcha para o abismo: caneta, lápis e os cadernos da escola.

Desvio minha atenção quando um senhor que sai do meio da multidão passa por mim. Caminhando com auxílio de uma bengala, usa um chapéu de abas largas, roupas todas brancas, com exceção da camisa vermelha que vai por dentro do paletó. Passa ao meu lado e o Outro que há em mim ouve sua voz sussurrada dentro da minha cabeça: “Fique tranquilo que em ano de Badé a justiça não falhará”.

O dia está ensolarado e o céu limpo, mas juro que ouço um trovão. Um arrepio estranho me desce a espinha e toma conta de todo o corpo. Olho para trás e o senhor já não mais é naquela direção. Seguiu e sumiu, com o kaos que rege o que somos todos os dias...







 





Nas asas mágicas dos sonhos

  Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró. "Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!",  dito popula...