Pietá - Emeric Marcier |
Nem bem raiou o dia e Bellhell já é uma balbúrdia hostil ao
recém desperto, como eu. Berra mecanicamente o despertador, uivam os caminhões de
lixo do estacionamento aqui atrás, com suas buzinas de ré ou coisa que o valha
e as crianças que chegam à escola aqui em frente ao prédio, gritando e dando
risadas (como podem ser tão barulhentas a esta hora da manhã?!).
O nada tênue amarelo do sol matutino que invade o quarto pela
janela, ignorando as cortinas blackout, é particularmente torturante para minha
hipersensibilidade à luz. Posso soar neurótico – da
guerra do existir/resistir no dia após dia –, mas nunca confiei em alguém que é
feliz antes das oito da manhã, me julguem.
Já no elevador, ainda letárgico pelo efeito da Areia dos sonhos
– Sandman não me trouxe um sonho esta noite –, meu olfato é agredido por um
perfume forte que não identifico (nem pretendo), e que causa uma revolução
armada em meu estômago ainda vazio. Todos os “bons
dias” que recebo pelo caminho, seja do morador que desceu comigo pelo elevador,
do porteiro ou da senhora da limpeza que cruzou meu caminho, são respondidos no
modo “autômato ad eterno”.
As filas de carros a perder de vista do trânsito
na Marquês são a melhor representação do comportamento de “efeito manada” que
configura nosso cotidiano no século XXI. Mas há algo de errado na frente da
padaria, que deixa parado o rebanho mecânico: viatura da polícia, carro da
imprensa, multidão arrebanhada ao redor.
O grito de dor sobrenatural daquela mulher
– rasga mortalha da realidade – interrompe o fluxo real do tempo. Cena que
desperta fúria e lamúria paralelamente. Abraçada ao menino caído, cercada pelos
agentes da lei, que vestem uniformes de batalha e usam as armas do cidadão de
bem para fazerem o que bem entendem, mais uma mãe terá que contrariar o fluxo
natural da vida. A senhora deve ser
mesmo cega, dona Justiça.
Link ao vivo do repórter para explicar o
quê não faz sentido. Pessoas ao redor filmam tudo com o olhar de abutre sedento
das câmeras dos smartphones e proferem as mesmas falas de sempre: “Não devia
ser coisa que prestasse esse aí”, “Um bandido a menos”, “Da baixada nunca saiu
nenhum santo”. Quando ouço tudo aquilo, só consigo pensar que já te pedimos
piedade, Senhor, mas as pessoas continuam caretas e cada vez mais covardes.
Enquanto revistam a mochila do garoto, que
estava no lugar e hora errados, que correu quando foi ordenado que parasse, e
cometeu o imperdoável crime de nascer preto e pobre, encontraram as únicas
armas que podem salvar esse país da marcha para o abismo: caneta, lápis e os
cadernos da escola.
Desvio minha atenção quando um senhor que
sai do meio da multidão passa por mim. Caminhando com auxílio de uma bengala, usa um chapéu
de abas largas, roupas todas brancas, com exceção da camisa vermelha que vai
por dentro do paletó. Passa ao meu lado e o Outro que há em mim ouve sua voz sussurrada dentro
da minha cabeça: “Fique tranquilo que em ano de Badé a justiça não falhará”.
O dia está ensolarado e o céu limpo, mas
juro que ouço um trovão. Um arrepio estranho me desce a espinha e toma conta de
todo o corpo. Olho para trás e o senhor já não mais é naquela direção. Seguiu e
sumiu, com o kaos que rege o que somos todos os dias...
Li com orgulho nos olhos de ser seu amigo. É isso mesmo, acho que aqui você se encontrou meu chapa...
ReplyDeleteRafael
Gostei da pegada. Muito bom! Parabéns.
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