Thursday, August 16, 2018

Resiste na raça

Salvador Dalí: Sentimento


Aqui do alto, o Outro que é em mim continua a observar e sequer sabe como ou porque a maioria do que se passa no magikaos cotidiano de Bellhell acontece. Nos menores detalhes do dia-a-noite estão as coisas que mais nos assombram/alumiam e, do nada (que também é tudo), voltamos a aprender com o que de mais simples testemunhamos.

Da sacada do apartamento, trilha sonora de fundo o rugido dos dragões/caminhões laranja que mastigam e devoram o lixo da cidade inteira, o forte vento leste traz o odor de sobras, que acaba depois suplantado pelo cheiro da chuva, anunciada no cinza-chumbo do lindo céu de mais um fim de tarde. É quando um outro som me chama atenção e faz olhar para baixo.

As gargalhadas e gritos vem das crianças que brincam e correm no pequeno e colorido labirinto de brinquedos do parquinho que foi construído próximo ao muro nos limites do condomínio. O grupo nem é tão grande assim, mas a algazarra que fazem é considerável, se querem saber. Correm, pulam, escorregam e caem por todos os lados, enquanto as mães, ocupadas demais com seus smartphones, delegam a vigília às babás.

Mesmo sob o olhar atento das "nanas", escapa uma cena que me parece um triste reflexo dos tempos conturbados e extremos em que vivemos. Toda vez que uma linda menininha negra, de tranças presas no alto da cabeça em um coque afro, tenta brincar com as outras crianças, elas correm para longe dela aos risos. Isso acontece umas duas ou três vezes, até que ela para de tentar e senta sozinha em um balanço.

Os adultos presentes ou não ligam para o que veem ou dão risada, como se aquilo não passasse de mais uma brincadeira à toa, coisa de criança, sabe como é?! Me pergunto se somos mesmo cruéis desde pequenos ou apenas replicamos comportamentos destrutivos de forma inata? Se somos a imagem e semelhança Dele, vai por mim, é do Velho Testamento que estamos falando, meu chapa!  

Sem saber o que fazer enquanto presencio a cena, sinto vontade de dizer-lhe que vai ficar tudo bem, que as coisas vão melhorar, mas já não tenho certeza disso há muito. São tempos sombrios e perigosos para os que ainda tem fé na humanidade. Estamos imersos demais nesse turbilhão de ódio, confusão, lema dos dias: cada um por si e todos contra todos.

A chuva começa a cair. O som das gotas atingindo os telhados começa a aumentar trazendo uma espécie de urro ritmado. Será o vento somado ao som dos trovões? Parecem... atabaques... Todas as crianças, mães e babás correm para se abrigar, menos a linda garotinha negra. Ela olha para o céu e sorri. Sente que está sendo abraçada, acolhida.

Nossos olhares se encontram e depois ela desvia novamente para os céus. Fico curioso e levanto também meu olhar. O que são aquelas nuvens brancas misturadas às nuvens de chuva? A luz do Sol começa a atravessar, um relâmpago clareia tudo e ela surge. Chame como quiser: Gaia, Iansä, Deus-mulher.

Lembro... do... futuro...? Mas lembrar é só o passado? Isso é sonhar ou delirar? Vai saber! Turbilhão de imagens, plano-sequência. Ela não mais é menina e sim jovem mulher de longos cachos ao vento. Lutas, amores, decepções, alegrias, mais lutas e multidões. Faculdade de Direito - direitos humanos para humanos esquerdos?! - choque de frente com a tropa.

Punho cerrado, palavras na desordem. Mais um estudante caiu e continua presente. Política de poucos a oprimir muitos. Estampidos e gritos. Balas de borracha, que apagam vidas e sonhos - mas “não desiste, preta, não desiste!” - se Martin teve um, temos em nós todos os sonhos do mundo!

Outro trovão me traz de volta. O céu está abrindo, mas a chuva continua batendo de frente, mal notei que havia me molhado. Lá embaixo ela continua a correr e brincar, se molhar faz mesmo um bem danado. Há uma mulher com ela ou é impressão minha? As duas cirandam de mãos dadas enquanto a água continua a cair. Meus olhos cheios d'água. Será da chuva? Sonho e kaos sempre de mãos dadas...  







  









  

  







Monday, August 13, 2018

Alguns trocados de magia naquela esquina

Josephine Wall: Captura del deseos

Idas e vindas Bellhell do céu! Não escolha seu caminho com sabedoria, apenas deixe-se ir/fluir e sinta como o Outro que é/está em ti pode entender muito mais do que seus olhos podem ver ou seus ouvidos conseguem ouvir. Um sol para cada um, lei máxima do mês de julho na capital onde o rio-mar carrega em suas correntezas almas e destinos.  

Uma ida ao posto de gasolina, para comprar mais "golpes de sorte de filtro vermelho". Na caminhada de volta para casa, travessia na faixa, caminhos que se cruzam. Aos pés do Grande Ben, símbolo de um império de outrora hoje em ruínas, mais precisamente na encruzilhada da travessa Humaitá com a Pedro Miranda, uma venezuelana implora por migalhas/trocados cercada por seus niños. Me pergunto se aquela senhora esteve ali esse tempo todo.

Como posso não tê-la visto na caminhada de ida? Sentada ali, num calor opressor, vento e mormaço de chumbo. Aquela figura de uma força esplêndida, marcada em cada ruga do rosto moreno e sofrido. Rugas que ilustram os caminhos tomados até ali, fugindo do Cavaleiro Fome e de um país destroçado pelo regime de homens armados até os dentes, que se alimentam dos sonhos de um povo e nele vomitam miséria. 

Jornada infausta até aqui. Uma sacola gasta de pano nas costas, pertence algum senão algumas roupas e o sopro de vida. Companheiro de vida segurando sua mão, na tristeza e na tristeza até que a morte os separe. Seus niños vem junto, cruzando fronteiras, poeiras, rios.

Quando meus olhos leem o tosco cartaz de papelão que ela segura, em que está escrito com uma letra de forma muito caprichada, que ela precisa de algum dinheiro para comprar comida, a Força guia minha mão para o bolso esquerdo da bermuda. Uma velha nota de R$5 que sequer sabia que tinha, o pouco que para muitos como aquela senhora é o tudo daquele dia.

Entrego-lhe o dinheiro e ela me sorri com um "Gracias". É quando dois sujeitos passam por nós fazendo comentários sobre os estrangeiros que são a nova praga que se alastra pela cidade, trazendo consigo doenças e todo tipo de sujeira. Rosnando que o (des)governo devia fazer algo à respeito.  

Sei que ela não entende o que eles diziam, mas sente a força do desprezo que a ignorância é capaz de conjurar. Um deles empurra uma das crianças dela, que brincava com os irmãos na calçada. O tempo se transforma, se distorce e um átimo de segundo dura para sempre. O olhar daquela mãe atinge o sujeito com uma lufada de vento mágika. A luz do sol me cega e, ainda assim, consigo enxergar projetando-se acima dela uma uma entidade ancestral, de cabelos longos e negros esvoaçantes e olhos de um brilho cósmico/kármico. 

O sujeito tropeça e cai, batendo a cabeça e ficando desacordado. O amigo em desespero tenta acordá-lo enquanto várias pessoas vão se juntando para ver o que se passa. Olho para a senhora assustado e recebo de volta o mesmo sorriso de antes. Então o vento-kaos sussurra nos ouvidos d'Outro que há em mim: "Crea en las brujas, las hay". Deixo escapar uma risada e sigo meu caminho... 










Nas asas mágicas dos sonhos

  Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró. "Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!",  dito popula...