Friday, May 12, 2023

Ruas de fogo

Fonte: Jornal El País


O som apressado dos teus passos ecoa no beco. Chapinhando nas poças d'água que a chuva deixou. Foge menino, corre rapaz! O mais rápido que conseguir. O mais longe que for capaz. Nem sabes o porquê disso, não é mesmo? Pois eu digo que é essa tua linda pele escura, que brilha demais! 

Eles já estão no teu encalço, feito um bando de chacais! Sedentos sentem o cheiro do teu medo, sabes do que são capaz. Insígnia no peito, uniforme e tudo mais. Natureza assassina, tipo qualquer capataz. Querem mesmo é a tua carne, moço. Pra eles é só um preto a menos, tanto fez como tanto faz.      

Apavorado, desesperado, quase encurralado. Teu coração tamborilando no peito. Acho que não consegues escapar, dessa vez não vai ter jeito. Continuas correndo mesmo muito cansado. Arfando, sufocando e o ar nos pulmões já quase faltando.

Saltando as cercas, pulando os muros. Se esgueirando pelos becos da baixada. Criança assustada, tentando se esconder num canto escuro qualquer. As pernas tremendo cansadas, porque não parastes de correr um segundo sequer. Fuga alucinada movida a desespero. Aquele suor frio escorrendo pela nuca, encharcando o cabelo. 

Mas dessa vez não teve jeito, te cercaram, te enquadraram. Armas em riste e apontadas pra ti, que, ali de joelhos, sente o que está porvir. Pelas janelas, olhares assombrados dos moradores dos barracos. A rasga-mortalha voa gritando, prenúncio de outro fim.

Susto e coice premeditado da arma de um policial. Todos ouvem os estampidos metálicos. Cheiro de pólvora no ar da noite. Tá lá mais um corpo estendido no chão. Depois é um ajuntamento de gente e confusão! Grito de uma mãe desesperada. "Vocês confundiram! Meu filho é inocente! Não é porque é preto que é bandido!". 

Gritos, uivos e choro dos moradores no local; mais um protesto contra todo esse abuso e violência sem propósito - para e pensa: será mesmo que é sem propósito? - E passará impune mais esse ato desses boçais? Não, dessa vez não! Não mais, porra! Nunca mais!  

Revolta, olhares chorosos em fúria e toda a gente da baixa com paus e pedras na mão. Agora quem está cercado são eles, os carniça, os alemão. As armas ainda em punho, mas as mãos e pernas tremendo no frio do momento. Sabem que ao primeiro movimento e vai tudo pros infernos. Então voa a primeira pedra; disparam outro tiro...

E é tanta gente movida a revolta! Paus, pedras, socos e chutes. Cacetadas, tiros e bombas de efeito pra lá de imoral. Mas balas acabam, a fúria dessa gente toda não! Onda humana se espalhando pelas ruas levando o que tiver pela frente. Barricadas erguidas, punhos serrados e coquetéis molotov prontos. Clamor de toda uma gente que entendeu que já passou dos limites! O gatilho do sistema não tem que ser a Lei. 

Podem vir mais viaturas e policiais. Exército, bombeiros e tudo mais. Nem tudo isso vai ser suficiente, agora que toda essa gente acordou e entendeu. O povo é quem manda! E queimando tudo eles vão provar... Fogo nos racistas! Fogo nos fascistas! Ditadura não mais!      

Sunday, February 12, 2023

E se for a hora...



Estranho pensar que deixamos de vislumbrar os milagres que acontecem todo santo dia porque não paramos. Sempre acelerados e tão concentrados em nós mesmos. Quanta informação destes sons e telas num ritmo frenético. Sempre conectados à grande rede, na velocidade absurda do Algoritmo. Sequer percebemos nosso entorno, nem presenciamos as mudanças que ocorrem na vizinhança em que moramos.

Ele sempre fora um cético até certo ponto. Um sujeito calado demais, para alguns até amargo. Criticava a maior parte das crenças e dizia que algumas eram tolas. Crer que a vida fosse regida por um poder maior? Perguntava-se por que agir de um modo garantiria um além dessa vida? E se não houver um além? Pura baboseira. 

Mas aquilo estava prestes a mudar.

Voltava para casa a passos lentos e curtos. O futebol com os amigos não lhe rendera nada além de um músculo distendido. Pontada perfurante na panturrilha ele agacha para massagear a perna e uma linda borboleta azul e preta lhe chama a atenção. Sorriu ao pensar que não via uma daquelas desde a infância. Quando o tempo parecia dilatar e demorar hermeticamente.

A borboleta voava num balé ao ritmo do vento em direção à rua . Vê uma bola quicando no mesmo sentido. Pensa no mesmo instante que atrás de uma bola, quase sempre vem uma criança. Pois é dito e feito; o garotinho não tinha mais do que quatro anos e corria com os braços estendidos buscando pelo brinquedo. Um breve momento de desatenção dos pais e agora tudo explodiria em caos. 

O uivo emborrachado da freada brusca de um carro que tenta evitar o choque. Ele não reage, assiste a tudo paralisado. Sente-se preso no intervalo de tempo dum piscar de olhos desse além-&-aquém simultâneo. As cores ao redor borradas se fundem. O horrível som metálico da colisão. Embora o carro tenha freado a tempo, o mesmo não aconteceu com um motoqueiro que vinha logo atrás. A batida é brutal, então moto e piloto voam sobre o capô do carro, girando por cima da criança e caindo alguns metros a frente. Todos ouvem um som enojante de carne e metal se despedaçando. 

Então tudo é tumulto generalizado. O trânsito simplesmente para por conta das muitas pessoas correndo em auxílio ao motoqueiro caído. Do outro lado da rua, um casal com lágrimas nos olhos abraça seu filho, num pedido de desculpas gaguejado em desespero, enquanto o garoto chora de susto apertando a bola contra o peito. O motorista desce do carro horrorizado e com os dedos trêmulos disca no celular chamando por socorro. 

Para ele tudo é silêncio, tempo se arrastando em câmera lenta numa realidade em preto e branco, a não ser pela borboleta azul, que contrasta com a cena. Ela voa sobre o casal e a criança, para então desaparecer sobre o muro de uma antiga casa. Ele então é liberto do transe paralisante, sons e cores retornam. Tudo se move de novo na bagunça de eventos. O motoqueiro, apesar de tudo, parece que vai ficar bem.

Procurando a borboleta, vê esta casa que nunca havia notado. No muro um grafite belíssimo. A figura de uma linda mulher de pele alva e cabelos pretos com mechas azuis sobre a testa. Um de seus olhos, de um negro fosco, dando uma piscadela enquanto sorri vagamente. Ele tem a sensação de que cai vertiginosamente naquele olhar profundo, não sabendo mais se desperto ou sonhando. Apenas caindo, caindo e caindo...   

   
       





 


Wednesday, February 8, 2023

Sobre Gigantes, Moinhos de vento & a Vontade do guerreiro

 

Dom Quixote e Sancho, nos traços de Pablo Picasso. 

Sobrevoavam o campo de batalha as duas imensas sombras. Voam em círculos, observando e grasnando sons que ecoam através das dimensões. Dois corvos tão negros que contrastam com o azul do céu em manchas pretas que parecem rasgos na realidade. Veem lá embaixo dois cavaleiros exaustos e abatidos. Parecem vagar à esmo, cavalgando encurvados sobre suas montarias. Um deles ainda tomado por um frenesi de batalha desgastante. Exaustos, com suas lanças quebradas e escudos trincados. Sobrevividos. 

O escudeiro insiste, tentando convencer seu senhor a desistir da batalha. Quer trazer sir Quixote de volta, seja lá de que reino de fantasia, para a realidade. Mostrar ao Cavaleiro da Triste Figura que tudo não passa de ilusão. Dizendo-lhe que enfrentava fantasmas de sua imaginação. E que não há luta mais vã do que aquela em que lutamos contra nossos próprios demônios.

Mas o sir não deu ouvidos a seu companheiro de jornadas. Apenas disse ao nobre Sancho que voltasse para casa e que o povoado ficaria seguro. Que lá soubessem que seu defensor gastaria até as últimas forças para vencer a ameaça gigante. Munido de sua última lança ainda intacta, Quixote esporeou seu cavalo. Com sua réstia de vontade a guiá-lo rumo ao embate final, ergueu o velho escudo com o brasão da família, trincado pelas batalhas com o Tempo. O guerreiro arremeteu contra o inimigo com tudo o que tinha.

Naquele instante da investida derradeira, o céu fechou-se e o pôr-do-sol deu lugar a pesadas nuvens cinzas. Do nada formou-se uma imensa tempestade com ventos muito fortes, raios e trovões, que soavam como a cavalgada de um exército feroz. Ao longe, Sancho observava bestificado enquanto os dois corvos, de uma penugem negra espectral, voavam ao lado de seu senhor na justa. Um sobre cada ombro do cavaleiro.  

Eles sentiram que ele era digno. Que não importando contra o que lutasse, o guerreiro não desistiria. Quixote, sem saber ao certo porque, sentiu-se movido por uma força intangível, talvez algo divino, que nutria cada fibra de seu velho corpo. Grossos pingos de chuva molham seu rosto, então ele sentiu que triunfaria. Após tantos fracassos; tantas golpes em que foi derrubado antes. Franziu a testa e com um olhar furioso se preparou para o golpe final em seu inimigo. Um maldito gigante que brandia sua nefasta arma de quatro lâminas, que ele girava com intento assassino. 

Foi quando veio o choque! No exato instante da colisão, um imenso Raio caiu do céu num brilho que parecia iluminar tudo entre a Vida e o Sonho. Cegando o próprio tecido da realidade. Seguido pela explosão de um Trovão que fez vibrar e tremer a própria Terra. Logo vem o Nada do som quase palpável, uma Orquestra do Infinito. Um silêncio que pareceu durar eras em segundos, quebrado então pelo canto dos pássaros. Voavam livremente num céu tão belo como nunca. E o pôr-do-sol retornou, agora num dourado brilho heroico.

Ao se erguer do chão, Sancho ainda estava  aturdido. A visão embaçada pelo clarão do Raio. Zonzo depois da queda com a onda de choque da explosão do golpe final. No local do embate, uma grande cratera e os restos queimados do Moinho de Vento. Nenhum sinal sequer do cavaleiro ou de seu alazão.

Uma brisa acalentadora soprou do norte, fazendo a fumaça negra subir aos céus numa espiral. Sancho então montou em seu burrico, ergueu seu olhar acompanhando a fumaça, que subia lentamente. Ele sentiu, naquele instante, que seu senhor não mais voltaria. Que estava para sempre onde sempre quis e merecia. O escudeiro teve um vislumbre onírico do grande Don Quixote de La Mancha combatendo e banqueteando até o fim dos tempos. Ao lado dos mais poderosos guerreiros imortais que jamais existiram.     

  

      

Sunday, February 5, 2023

Idas & Vidas



E se não houver um depois, José, e Agora? Terá valido à pena tanto o teu esforço sacrificante? Reles somos, homem-fabril, e você marcha, José,  rumo àquela Fábrica, cadafalso pós-moderno post-mortem. A mesma que gera o calor que faz teu sangue entrar em ebulição e causará a pane no teu sistema individual de saúde. Que um dia te trocará como peça quebrada, descartado feito uma engrenagem solta. E assim foi, porque sempre será assim neste Sistema onde tudo é Capital, inclusive a pena. Morre-se pelo lucro de ter vivido, e a que custo?

Quem te faz esses questionamentos, já tão próximo do teu fim, sou eu:primogenitus tuus, ille qui scribit, direto aqui do outro lado da página em branco. Que revejo ainda tua vida se acabar com as mesmas lágrimas nos olhos, ainda que anos já tenham se passado. De além tu, vejo teu fim assim como vi também o começo. Ou poderia tê-lo feito se assim quisesse a imaginação. 

Já flutuas invisível além do Tempo, sobre a casa do lote 13 naquela quadra esquecida da Company Ghost Town. Lote que ficava precisamente abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul. Exato lugar que marca o término, nessa tua vida-jornada, da navegação por mares mais calmos no Espaço-Tempo da jornada de vida.

A casa está irreconhecível. Ainda assim sei que consegues ouvir os ecos das risadas e choros em todas as memórias das histórias vividas ali. Illi aurea tempora. Bem quando muito do pouco que entendíamos do todo de tudo ainda parecia fazer algum sentido. 

Vozes alarmadas e um bip-bip funesto que indicam a proximidade da linha-reta-achatada-e-final cortam a conexão com as lembranças. Mesmo que não haja um além daqui, o que foi até ali vivido junto a todos os teus, espero que sintas que foi muito mais do que será vivido e sentido por muitos. O ar se esvai. O ar se esvai dos pulmões pela última vez. Tua linha reta final, plana neste plano.  Vade cum angelis, capitanee.



 

Nas asas mágicas dos sonhos

  Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró. "Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!",  dito popula...