Sunday, February 12, 2023

E se for a hora...



Estranho pensar que deixamos de vislumbrar os milagres que acontecem todo santo dia porque não paramos. Sempre acelerados e tão concentrados em nós mesmos. Quanta informação destes sons e telas num ritmo frenético. Sempre conectados à grande rede, na velocidade absurda do Algoritmo. Sequer percebemos nosso entorno, nem presenciamos as mudanças que ocorrem na vizinhança em que moramos.

Ele sempre fora um cético até certo ponto. Um sujeito calado demais, para alguns até amargo. Criticava a maior parte das crenças e dizia que algumas eram tolas. Crer que a vida fosse regida por um poder maior? Perguntava-se por que agir de um modo garantiria um além dessa vida? E se não houver um além? Pura baboseira. 

Mas aquilo estava prestes a mudar.

Voltava para casa a passos lentos e curtos. O futebol com os amigos não lhe rendera nada além de um músculo distendido. Pontada perfurante na panturrilha ele agacha para massagear a perna e uma linda borboleta azul e preta lhe chama a atenção. Sorriu ao pensar que não via uma daquelas desde a infância. Quando o tempo parecia dilatar e demorar hermeticamente.

A borboleta voava num balé ao ritmo do vento em direção à rua . Vê uma bola quicando no mesmo sentido. Pensa no mesmo instante que atrás de uma bola, quase sempre vem uma criança. Pois é dito e feito; o garotinho não tinha mais do que quatro anos e corria com os braços estendidos buscando pelo brinquedo. Um breve momento de desatenção dos pais e agora tudo explodiria em caos. 

O uivo emborrachado da freada brusca de um carro que tenta evitar o choque. Ele não reage, assiste a tudo paralisado. Sente-se preso no intervalo de tempo dum piscar de olhos desse além-&-aquém simultâneo. As cores ao redor borradas se fundem. O horrível som metálico da colisão. Embora o carro tenha freado a tempo, o mesmo não aconteceu com um motoqueiro que vinha logo atrás. A batida é brutal, então moto e piloto voam sobre o capô do carro, girando por cima da criança e caindo alguns metros a frente. Todos ouvem um som enojante de carne e metal se despedaçando. 

Então tudo é tumulto generalizado. O trânsito simplesmente para por conta das muitas pessoas correndo em auxílio ao motoqueiro caído. Do outro lado da rua, um casal com lágrimas nos olhos abraça seu filho, num pedido de desculpas gaguejado em desespero, enquanto o garoto chora de susto apertando a bola contra o peito. O motorista desce do carro horrorizado e com os dedos trêmulos disca no celular chamando por socorro. 

Para ele tudo é silêncio, tempo se arrastando em câmera lenta numa realidade em preto e branco, a não ser pela borboleta azul, que contrasta com a cena. Ela voa sobre o casal e a criança, para então desaparecer sobre o muro de uma antiga casa. Ele então é liberto do transe paralisante, sons e cores retornam. Tudo se move de novo na bagunça de eventos. O motoqueiro, apesar de tudo, parece que vai ficar bem.

Procurando a borboleta, vê esta casa que nunca havia notado. No muro um grafite belíssimo. A figura de uma linda mulher de pele alva e cabelos pretos com mechas azuis sobre a testa. Um de seus olhos, de um negro fosco, dando uma piscadela enquanto sorri vagamente. Ele tem a sensação de que cai vertiginosamente naquele olhar profundo, não sabendo mais se desperto ou sonhando. Apenas caindo, caindo e caindo...   

   
       





 


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