Wednesday, February 8, 2023

Sobre Gigantes, Moinhos de vento & a Vontade do guerreiro

 

Dom Quixote e Sancho, nos traços de Pablo Picasso. 

Sobrevoavam o campo de batalha as duas imensas sombras. Voam em círculos, observando e grasnando sons que ecoam através das dimensões. Dois corvos tão negros que contrastam com o azul do céu em manchas pretas que parecem rasgos na realidade. Veem lá embaixo dois cavaleiros exaustos e abatidos. Parecem vagar à esmo, cavalgando encurvados sobre suas montarias. Um deles ainda tomado por um frenesi de batalha desgastante. Exaustos, com suas lanças quebradas e escudos trincados. Sobrevividos. 

O escudeiro insiste, tentando convencer seu senhor a desistir da batalha. Quer trazer sir Quixote de volta, seja lá de que reino de fantasia, para a realidade. Mostrar ao Cavaleiro da Triste Figura que tudo não passa de ilusão. Dizendo-lhe que enfrentava fantasmas de sua imaginação. E que não há luta mais vã do que aquela em que lutamos contra nossos próprios demônios.

Mas o sir não deu ouvidos a seu companheiro de jornadas. Apenas disse ao nobre Sancho que voltasse para casa e que o povoado ficaria seguro. Que lá soubessem que seu defensor gastaria até as últimas forças para vencer a ameaça gigante. Munido de sua última lança ainda intacta, Quixote esporeou seu cavalo. Com sua réstia de vontade a guiá-lo rumo ao embate final, ergueu o velho escudo com o brasão da família, trincado pelas batalhas com o Tempo. O guerreiro arremeteu contra o inimigo com tudo o que tinha.

Naquele instante da investida derradeira, o céu fechou-se e o pôr-do-sol deu lugar a pesadas nuvens cinzas. Do nada formou-se uma imensa tempestade com ventos muito fortes, raios e trovões, que soavam como a cavalgada de um exército feroz. Ao longe, Sancho observava bestificado enquanto os dois corvos, de uma penugem negra espectral, voavam ao lado de seu senhor na justa. Um sobre cada ombro do cavaleiro.  

Eles sentiram que ele era digno. Que não importando contra o que lutasse, o guerreiro não desistiria. Quixote, sem saber ao certo porque, sentiu-se movido por uma força intangível, talvez algo divino, que nutria cada fibra de seu velho corpo. Grossos pingos de chuva molham seu rosto, então ele sentiu que triunfaria. Após tantos fracassos; tantas golpes em que foi derrubado antes. Franziu a testa e com um olhar furioso se preparou para o golpe final em seu inimigo. Um maldito gigante que brandia sua nefasta arma de quatro lâminas, que ele girava com intento assassino. 

Foi quando veio o choque! No exato instante da colisão, um imenso Raio caiu do céu num brilho que parecia iluminar tudo entre a Vida e o Sonho. Cegando o próprio tecido da realidade. Seguido pela explosão de um Trovão que fez vibrar e tremer a própria Terra. Logo vem o Nada do som quase palpável, uma Orquestra do Infinito. Um silêncio que pareceu durar eras em segundos, quebrado então pelo canto dos pássaros. Voavam livremente num céu tão belo como nunca. E o pôr-do-sol retornou, agora num dourado brilho heroico.

Ao se erguer do chão, Sancho ainda estava  aturdido. A visão embaçada pelo clarão do Raio. Zonzo depois da queda com a onda de choque da explosão do golpe final. No local do embate, uma grande cratera e os restos queimados do Moinho de Vento. Nenhum sinal sequer do cavaleiro ou de seu alazão.

Uma brisa acalentadora soprou do norte, fazendo a fumaça negra subir aos céus numa espiral. Sancho então montou em seu burrico, ergueu seu olhar acompanhando a fumaça, que subia lentamente. Ele sentiu, naquele instante, que seu senhor não mais voltaria. Que estava para sempre onde sempre quis e merecia. O escudeiro teve um vislumbre onírico do grande Don Quixote de La Mancha combatendo e banqueteando até o fim dos tempos. Ao lado dos mais poderosos guerreiros imortais que jamais existiram.     

  

      

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