Thursday, December 22, 2022

Em marcha breve


Penso que elas não tem a menor noção de que essa jornada será a última. Aliás, como todas as que elas fazem ao saírem do ninho em busca de comida. Todas as buscas são a última - de alguma forma - para qualquer integrante deste grupo que também partiu em busca de comida. Quando o alimento é só o que importa, quanto isso pode custar? E se há mesmo um preço, pela resignação com que andam tão cegamente, sempre em frente, naquela fila sobre a mesa, devem estar dispostas a pagar. Deve ser da natureza de todas elas fazer o que for preciso e possível pela Rainha-Mãe. 
 
Todos saúdem a Rainha-Mãe: "Viva! Viva! Mate! Morra!" Porque tudo que é feito na vida é por Ela. Marcham cegamente naquelas filas. Rastros negros sobre a toalha de mesa de uma sala qualquer, chegando cada vez mais próximas dos farelos de pão que sobraram do café da manhã. Tão determinadas e vorazes quanto frágeis e dispensáveis. Apenas outro rastro insectóide preto de uma centena de antenas e patas numa entropia entomológica estranha.  

Muito além do ninho, antro, formigueiro, onde jamais estiveram. Todo um caminho sem volta trilhado pelo chão, até subir pelas pernas de metal da mesa e continuarem a trilha sobre uma toalha de chita com desenhos num padrão geométrico qualquer e que jamais fez sentido, ao menos não que se saiba. Quase chegando ao destino final, bem próximas do que nos parecem migalhas e para elas são alimento para todo um ninho, as vejo aqui, do alto e me parecem menos que nada. Uma tragédia provocada pela própria Natureza. Então penso: "E se..." 

Basta que, com a palma de uma das mãos, eu esmague a uma delas. Poderia esmagar a fileira inteira se quisesse! Ou quem sabe deixar cair um só filete d'água e tudo seria caos. Um desespero incontrolável. Fugiriam num frenesi tresloucado. Não há mais propósito, nem mais o que buscar, sobreviver seria a meta. Só o que resta é a breve noção de fim, isto para mim, que penso ter algum entendimento sobre alguma coisa. Todas elas sequer tem esse privilégio. Nem penso que seja tão privilegiado assim, depois de tudo o que vi nestes tempos em que ficamos tão mais demasiado humanos.  

Talvez por isso que a Natureza continua a se manifestar à partir da lei do "muitos com uma passagem breve pela vida sequer tem a noção do que estavam fazendo. De que aqui estiveram e uns outros poucos devem durar um tanto mais apenas para saberem que há um fim próximo. Certo limite para existirem aqui" E qual dos grupos somos nós mesmo? Porque, se somos mesmo os que tem a noção de que aqui estamos e não duraremos tanto, por que insistimos em não entender uns aos outros? De criar formas cada vez mais eficazes para extinguir tudo e todos, tornando assim mais breve a vida do próprio planeta? 

Diferente delas, não vivemos pelo coletivo. Sequer as migalhas compartilhamos. Criamos o maldito sistema que nos venceu e que, cedo ou tarde, dará cabo de todos nós. Sem a figura da Rainha-Mãe, mas nesse ritmo, seremos devorados por um Grande-Irmão. Aquele que saudamos sem nem mesmo saber como, quando e onde. Todos saúdem o Grande-Irmão! "Viva! Vivos! Mortos-vivos! Matem! Morram!" 

Arquivo de texto encontrado num dispositivo USB qualquer, no ano de 2042. Pouco antes do "Levante final" do Sistema.

Nas asas mágicas dos sonhos

  Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró. "Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!",  dito popula...