Monday, February 26, 2024

Nas asas mágicas dos sonhos

 

Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró.

"Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!", 

dito popular castelhano 


Elas sempre preferiram viajar à noite, longe dos olhares de incompreensão e de julgamento

Guiadas pela luz do Espelho da Deusa-mãe e saltando pelos rastros das estrelas

Belas e velozes tomam as formas de criaturas da noite que são  protegidas pelas sombras

Não voam em vassouras porque tem as asas da brisa noturna


Transmorfas elas mudam quando precisam, ora pássaros, noutras insetos

Mas sempre ocultas pela penumbra da noite, entre sonhos e ilusões

Então como, Elvina, acabastes perdida e presa, pobre borboleta-bruxa da noite? 

Fostes traída pelo inverno, não é assim? Os ventos mudam e as nuvens encobrem Luna e sua luz guia das crias da noite


Frágil e bela, acabou perdendo-se e pousou na parede de um quarto qualquer

E se esse for o lar de um dos que não enxerga a magia das coisas e queima o que devia encantá-lo?

Dos que estão presos no horror das crenças limitadas, que julgam e discriminam aquilo que não entendem


Se matam uns aos outros em nome daquilo que dizem ser deus, o que não farão contigo, filha da natureza?

Sei que ainda podes ouvir os gritos das milhares de irmãs que foram caçadas 

Que morreram queimadas nas fogueiras do ódio e da incompreensão de uma fé inventada e manipulada


A luz do quarto é acesa e agora pode ser tarde demais para ti

Um sujeito adulto para no umbral da porta do cômodo e olha fixamente para ti

Estás pousada e inerte, com tuas asas marrons contrastando com o branco da parede

O sujeito se aproximando a passos lentos, ergue os braços com as mãos espalmadas em tua direção


Sei que sentes o impulso de voar e fugir, mas também tem aquela aura emanando dele

A sensação de que ele não te fará mal algum caso venha a tê-la entre as mãos

E assim acontece quando tentas voar e ele apenas te segura tentando não machucá-la


Ele então caminha em direção à janela mais próxima do quarto, que está aberta e mostra o céu noturno que enfim parece estar abrindo, revelando as estrelas

Prestes a abrir as mãos e te soltar para o ar livre do manto da noite, podes sentir que ali há um dos que ainda veem e creem na magia que há nas coisas 

Um viajante dos sonhos, daqueles que fazem da jornada da imaginação um seu verdadeiro ofício 


Já livre no céu noturno, ouves ele dizer num tom de voz baixo e suave “voa, menina, voa; vai ficar tudo bem”

Teu bater de asas poderia causar um tsunami no outro lado do mundo, ao invés disso trará bons sonhos a quem te libertou e todos aqueles que ainda sentem a magia dos dias

Quem sabe não os encontre vagando pelo Sonhar e acabe inspirando histórias, canções ou mesmo poemas como este


J.K. Coutinho


 


 


Thursday, February 22, 2024

O medo do escuro em si

   
créditos da imagem: https://brasilescola.uol.com.br/fisica/buraco-minhoca.htm

    Da escuridão viemos ao nascer e pra lá voltaremos ao morrer. Afinal o escuro é o estado natural de tudo. Não fosse por esse satélite natural que faz as vezes de espelho refletir a luz do sol - que para muitos já foi ou ainda é um tipo de deus - sequer haveria diferença entre dia e noite. Seria sempre noite, assim como acontece no espaço infinito, a tal fronteira final. 
    E assim é a vida. Então porque tanto medo do escuro? Depois de tudo, comecei a entender melhor que esse medo é, na verdade, daquilo que o escuro pode acabar mostrando, e não do que possa estar escondido e vivendo lá.
   Outra noite comum do inverno amazônico, sabe como é, chuva fina e persistente. Então veio aquela náusea e a estranha sensação que arrepiou todos os pelos do meu corpo. Justo no mesmo momento em que tive um dos 'episódios' em que perco pedaços de mim, alguns fragmentos da minha memória. Coincidência? 
    Logo cedo vi no jornal algo sobre um fenômeno astronômico. Uma chuva de estrelas cadentes ou coisa que o valha. Então houve aquele 'pulso' que atingiu a cidade inteira e fez as luzes de Belém piscarem por uma fração de segundos. Mais uma lufada de vento que estremece as janelas e as paredes das casa. Deitei pra dormir, logo depois do episódio. Sonhei com uma lasca de estrela caindo do céu. 
    No dia seguinte teve aquilo: o bendito buraco que se abriu no asfalto, bem em frente à sorveteria que fica ao lado do condomínio onde moro. Um desses muitos buracos bem comuns que aparecem por toda a cidade nessa época de chuvas. O típico "buraco de engolir carro", como disse certa vez minha esposa. Sabe como é, aquele buraco que parece continuar crescendo e engolindo todo tipo de entulho que as pessoas colocam nele para sinalizar aos transeuntes que ali há um buraco.
    Mas algo ali me pareceu estranho quando passei ao lado pela primeira vez. Estava à caminho da farmácia. Era como se a escuridão desse buraco quisesse tragar tudo ao redor. E veio, então, aquela vontade bizarra de descer e ver até onde ia essa cratera de uma escuridão fosca. Poço sem fundo; buraco de minhoca; rasgo entre os universos; Túnel entre dimensões de tempo e espaço.
    Parado ao lado do buraco, com os olhos fixos no vazio. Mais um episódio em que me perco dentro de mim. Vou lá e pulo de uma vez. Alice caindo na toca do Coelho Branco. Dorothy tragada pelo furacão. Salto de Fé da ponta do mundo. Caindo, caindo, caindo. Não vejo nem ouço mais nada. Também não há cheiro algum. O todo é aquela escuridão e silêncio ao redor. Já não me sei mais. De volta ao estado natural das coisas não há mais porquê temer as ou o que há por trás delas.   


J. K. Coutinho
      
   
    
       
   

Friday, May 12, 2023

Ruas de fogo

Fonte: Jornal El País


O som apressado dos teus passos ecoa no beco. Chapinhando nas poças d'água que a chuva deixou. Foge menino, corre rapaz! O mais rápido que conseguir. O mais longe que for capaz. Nem sabes o porquê disso, não é mesmo? Pois eu digo que é essa tua linda pele escura, que brilha demais! 

Eles já estão no teu encalço, feito um bando de chacais! Sedentos sentem o cheiro do teu medo, sabes do que são capaz. Insígnia no peito, uniforme e tudo mais. Natureza assassina, tipo qualquer capataz. Querem mesmo é a tua carne, moço. Pra eles é só um preto a menos, tanto fez como tanto faz.      

Apavorado, desesperado, quase encurralado. Teu coração tamborilando no peito. Acho que não consegues escapar, dessa vez não vai ter jeito. Continuas correndo mesmo muito cansado. Arfando, sufocando e o ar nos pulmões já quase faltando.

Saltando as cercas, pulando os muros. Se esgueirando pelos becos da baixada. Criança assustada, tentando se esconder num canto escuro qualquer. As pernas tremendo cansadas, porque não parastes de correr um segundo sequer. Fuga alucinada movida a desespero. Aquele suor frio escorrendo pela nuca, encharcando o cabelo. 

Mas dessa vez não teve jeito, te cercaram, te enquadraram. Armas em riste e apontadas pra ti, que, ali de joelhos, sente o que está porvir. Pelas janelas, olhares assombrados dos moradores dos barracos. A rasga-mortalha voa gritando, prenúncio de outro fim.

Susto e coice premeditado da arma de um policial. Todos ouvem os estampidos metálicos. Cheiro de pólvora no ar da noite. Tá lá mais um corpo estendido no chão. Depois é um ajuntamento de gente e confusão! Grito de uma mãe desesperada. "Vocês confundiram! Meu filho é inocente! Não é porque é preto que é bandido!". 

Gritos, uivos e choro dos moradores no local; mais um protesto contra todo esse abuso e violência sem propósito - para e pensa: será mesmo que é sem propósito? - E passará impune mais esse ato desses boçais? Não, dessa vez não! Não mais, porra! Nunca mais!  

Revolta, olhares chorosos em fúria e toda a gente da baixa com paus e pedras na mão. Agora quem está cercado são eles, os carniça, os alemão. As armas ainda em punho, mas as mãos e pernas tremendo no frio do momento. Sabem que ao primeiro movimento e vai tudo pros infernos. Então voa a primeira pedra; disparam outro tiro...

E é tanta gente movida a revolta! Paus, pedras, socos e chutes. Cacetadas, tiros e bombas de efeito pra lá de imoral. Mas balas acabam, a fúria dessa gente toda não! Onda humana se espalhando pelas ruas levando o que tiver pela frente. Barricadas erguidas, punhos serrados e coquetéis molotov prontos. Clamor de toda uma gente que entendeu que já passou dos limites! O gatilho do sistema não tem que ser a Lei. 

Podem vir mais viaturas e policiais. Exército, bombeiros e tudo mais. Nem tudo isso vai ser suficiente, agora que toda essa gente acordou e entendeu. O povo é quem manda! E queimando tudo eles vão provar... Fogo nos racistas! Fogo nos fascistas! Ditadura não mais!      

Sunday, February 12, 2023

E se for a hora...



Estranho pensar que deixamos de vislumbrar os milagres que acontecem todo santo dia porque não paramos. Sempre acelerados e tão concentrados em nós mesmos. Quanta informação destes sons e telas num ritmo frenético. Sempre conectados à grande rede, na velocidade absurda do Algoritmo. Sequer percebemos nosso entorno, nem presenciamos as mudanças que ocorrem na vizinhança em que moramos.

Ele sempre fora um cético até certo ponto. Um sujeito calado demais, para alguns até amargo. Criticava a maior parte das crenças e dizia que algumas eram tolas. Crer que a vida fosse regida por um poder maior? Perguntava-se por que agir de um modo garantiria um além dessa vida? E se não houver um além? Pura baboseira. 

Mas aquilo estava prestes a mudar.

Voltava para casa a passos lentos e curtos. O futebol com os amigos não lhe rendera nada além de um músculo distendido. Pontada perfurante na panturrilha ele agacha para massagear a perna e uma linda borboleta azul e preta lhe chama a atenção. Sorriu ao pensar que não via uma daquelas desde a infância. Quando o tempo parecia dilatar e demorar hermeticamente.

A borboleta voava num balé ao ritmo do vento em direção à rua . Vê uma bola quicando no mesmo sentido. Pensa no mesmo instante que atrás de uma bola, quase sempre vem uma criança. Pois é dito e feito; o garotinho não tinha mais do que quatro anos e corria com os braços estendidos buscando pelo brinquedo. Um breve momento de desatenção dos pais e agora tudo explodiria em caos. 

O uivo emborrachado da freada brusca de um carro que tenta evitar o choque. Ele não reage, assiste a tudo paralisado. Sente-se preso no intervalo de tempo dum piscar de olhos desse além-&-aquém simultâneo. As cores ao redor borradas se fundem. O horrível som metálico da colisão. Embora o carro tenha freado a tempo, o mesmo não aconteceu com um motoqueiro que vinha logo atrás. A batida é brutal, então moto e piloto voam sobre o capô do carro, girando por cima da criança e caindo alguns metros a frente. Todos ouvem um som enojante de carne e metal se despedaçando. 

Então tudo é tumulto generalizado. O trânsito simplesmente para por conta das muitas pessoas correndo em auxílio ao motoqueiro caído. Do outro lado da rua, um casal com lágrimas nos olhos abraça seu filho, num pedido de desculpas gaguejado em desespero, enquanto o garoto chora de susto apertando a bola contra o peito. O motorista desce do carro horrorizado e com os dedos trêmulos disca no celular chamando por socorro. 

Para ele tudo é silêncio, tempo se arrastando em câmera lenta numa realidade em preto e branco, a não ser pela borboleta azul, que contrasta com a cena. Ela voa sobre o casal e a criança, para então desaparecer sobre o muro de uma antiga casa. Ele então é liberto do transe paralisante, sons e cores retornam. Tudo se move de novo na bagunça de eventos. O motoqueiro, apesar de tudo, parece que vai ficar bem.

Procurando a borboleta, vê esta casa que nunca havia notado. No muro um grafite belíssimo. A figura de uma linda mulher de pele alva e cabelos pretos com mechas azuis sobre a testa. Um de seus olhos, de um negro fosco, dando uma piscadela enquanto sorri vagamente. Ele tem a sensação de que cai vertiginosamente naquele olhar profundo, não sabendo mais se desperto ou sonhando. Apenas caindo, caindo e caindo...   

   
       





 


Wednesday, February 8, 2023

Sobre Gigantes, Moinhos de vento & a Vontade do guerreiro

 

Dom Quixote e Sancho, nos traços de Pablo Picasso. 

Sobrevoavam o campo de batalha as duas imensas sombras. Voam em círculos, observando e grasnando sons que ecoam através das dimensões. Dois corvos tão negros que contrastam com o azul do céu em manchas pretas que parecem rasgos na realidade. Veem lá embaixo dois cavaleiros exaustos e abatidos. Parecem vagar à esmo, cavalgando encurvados sobre suas montarias. Um deles ainda tomado por um frenesi de batalha desgastante. Exaustos, com suas lanças quebradas e escudos trincados. Sobrevividos. 

O escudeiro insiste, tentando convencer seu senhor a desistir da batalha. Quer trazer sir Quixote de volta, seja lá de que reino de fantasia, para a realidade. Mostrar ao Cavaleiro da Triste Figura que tudo não passa de ilusão. Dizendo-lhe que enfrentava fantasmas de sua imaginação. E que não há luta mais vã do que aquela em que lutamos contra nossos próprios demônios.

Mas o sir não deu ouvidos a seu companheiro de jornadas. Apenas disse ao nobre Sancho que voltasse para casa e que o povoado ficaria seguro. Que lá soubessem que seu defensor gastaria até as últimas forças para vencer a ameaça gigante. Munido de sua última lança ainda intacta, Quixote esporeou seu cavalo. Com sua réstia de vontade a guiá-lo rumo ao embate final, ergueu o velho escudo com o brasão da família, trincado pelas batalhas com o Tempo. O guerreiro arremeteu contra o inimigo com tudo o que tinha.

Naquele instante da investida derradeira, o céu fechou-se e o pôr-do-sol deu lugar a pesadas nuvens cinzas. Do nada formou-se uma imensa tempestade com ventos muito fortes, raios e trovões, que soavam como a cavalgada de um exército feroz. Ao longe, Sancho observava bestificado enquanto os dois corvos, de uma penugem negra espectral, voavam ao lado de seu senhor na justa. Um sobre cada ombro do cavaleiro.  

Eles sentiram que ele era digno. Que não importando contra o que lutasse, o guerreiro não desistiria. Quixote, sem saber ao certo porque, sentiu-se movido por uma força intangível, talvez algo divino, que nutria cada fibra de seu velho corpo. Grossos pingos de chuva molham seu rosto, então ele sentiu que triunfaria. Após tantos fracassos; tantas golpes em que foi derrubado antes. Franziu a testa e com um olhar furioso se preparou para o golpe final em seu inimigo. Um maldito gigante que brandia sua nefasta arma de quatro lâminas, que ele girava com intento assassino. 

Foi quando veio o choque! No exato instante da colisão, um imenso Raio caiu do céu num brilho que parecia iluminar tudo entre a Vida e o Sonho. Cegando o próprio tecido da realidade. Seguido pela explosão de um Trovão que fez vibrar e tremer a própria Terra. Logo vem o Nada do som quase palpável, uma Orquestra do Infinito. Um silêncio que pareceu durar eras em segundos, quebrado então pelo canto dos pássaros. Voavam livremente num céu tão belo como nunca. E o pôr-do-sol retornou, agora num dourado brilho heroico.

Ao se erguer do chão, Sancho ainda estava  aturdido. A visão embaçada pelo clarão do Raio. Zonzo depois da queda com a onda de choque da explosão do golpe final. No local do embate, uma grande cratera e os restos queimados do Moinho de Vento. Nenhum sinal sequer do cavaleiro ou de seu alazão.

Uma brisa acalentadora soprou do norte, fazendo a fumaça negra subir aos céus numa espiral. Sancho então montou em seu burrico, ergueu seu olhar acompanhando a fumaça, que subia lentamente. Ele sentiu, naquele instante, que seu senhor não mais voltaria. Que estava para sempre onde sempre quis e merecia. O escudeiro teve um vislumbre onírico do grande Don Quixote de La Mancha combatendo e banqueteando até o fim dos tempos. Ao lado dos mais poderosos guerreiros imortais que jamais existiram.     

  

      

Sunday, February 5, 2023

Idas & Vidas



E se não houver um depois, José, e Agora? Terá valido à pena tanto o teu esforço sacrificante? Reles somos, homem-fabril, e você marcha, José,  rumo àquela Fábrica, cadafalso pós-moderno post-mortem. A mesma que gera o calor que faz teu sangue entrar em ebulição e causará a pane no teu sistema individual de saúde. Que um dia te trocará como peça quebrada, descartado feito uma engrenagem solta. E assim foi, porque sempre será assim neste Sistema onde tudo é Capital, inclusive a pena. Morre-se pelo lucro de ter vivido, e a que custo?

Quem te faz esses questionamentos, já tão próximo do teu fim, sou eu:primogenitus tuus, ille qui scribit, direto aqui do outro lado da página em branco. Que revejo ainda tua vida se acabar com as mesmas lágrimas nos olhos, ainda que anos já tenham se passado. De além tu, vejo teu fim assim como vi também o começo. Ou poderia tê-lo feito se assim quisesse a imaginação. 

Já flutuas invisível além do Tempo, sobre a casa do lote 13 naquela quadra esquecida da Company Ghost Town. Lote que ficava precisamente abaixo da constelação do Cruzeiro do Sul. Exato lugar que marca o término, nessa tua vida-jornada, da navegação por mares mais calmos no Espaço-Tempo da jornada de vida.

A casa está irreconhecível. Ainda assim sei que consegues ouvir os ecos das risadas e choros em todas as memórias das histórias vividas ali. Illi aurea tempora. Bem quando muito do pouco que entendíamos do todo de tudo ainda parecia fazer algum sentido. 

Vozes alarmadas e um bip-bip funesto que indicam a proximidade da linha-reta-achatada-e-final cortam a conexão com as lembranças. Mesmo que não haja um além daqui, o que foi até ali vivido junto a todos os teus, espero que sintas que foi muito mais do que será vivido e sentido por muitos. O ar se esvai. O ar se esvai dos pulmões pela última vez. Tua linha reta final, plana neste plano.  Vade cum angelis, capitanee.



 

Thursday, December 22, 2022

Em marcha breve


Penso que elas não tem a menor noção de que essa jornada será a última. Aliás, como todas as que elas fazem ao saírem do ninho em busca de comida. Todas as buscas são a última - de alguma forma - para qualquer integrante deste grupo que também partiu em busca de comida. Quando o alimento é só o que importa, quanto isso pode custar? E se há mesmo um preço, pela resignação com que andam tão cegamente, sempre em frente, naquela fila sobre a mesa, devem estar dispostas a pagar. Deve ser da natureza de todas elas fazer o que for preciso e possível pela Rainha-Mãe. 
 
Todos saúdem a Rainha-Mãe: "Viva! Viva! Mate! Morra!" Porque tudo que é feito na vida é por Ela. Marcham cegamente naquelas filas. Rastros negros sobre a toalha de mesa de uma sala qualquer, chegando cada vez mais próximas dos farelos de pão que sobraram do café da manhã. Tão determinadas e vorazes quanto frágeis e dispensáveis. Apenas outro rastro insectóide preto de uma centena de antenas e patas numa entropia entomológica estranha.  

Muito além do ninho, antro, formigueiro, onde jamais estiveram. Todo um caminho sem volta trilhado pelo chão, até subir pelas pernas de metal da mesa e continuarem a trilha sobre uma toalha de chita com desenhos num padrão geométrico qualquer e que jamais fez sentido, ao menos não que se saiba. Quase chegando ao destino final, bem próximas do que nos parecem migalhas e para elas são alimento para todo um ninho, as vejo aqui, do alto e me parecem menos que nada. Uma tragédia provocada pela própria Natureza. Então penso: "E se..." 

Basta que, com a palma de uma das mãos, eu esmague a uma delas. Poderia esmagar a fileira inteira se quisesse! Ou quem sabe deixar cair um só filete d'água e tudo seria caos. Um desespero incontrolável. Fugiriam num frenesi tresloucado. Não há mais propósito, nem mais o que buscar, sobreviver seria a meta. Só o que resta é a breve noção de fim, isto para mim, que penso ter algum entendimento sobre alguma coisa. Todas elas sequer tem esse privilégio. Nem penso que seja tão privilegiado assim, depois de tudo o que vi nestes tempos em que ficamos tão mais demasiado humanos.  

Talvez por isso que a Natureza continua a se manifestar à partir da lei do "muitos com uma passagem breve pela vida sequer tem a noção do que estavam fazendo. De que aqui estiveram e uns outros poucos devem durar um tanto mais apenas para saberem que há um fim próximo. Certo limite para existirem aqui" E qual dos grupos somos nós mesmo? Porque, se somos mesmo os que tem a noção de que aqui estamos e não duraremos tanto, por que insistimos em não entender uns aos outros? De criar formas cada vez mais eficazes para extinguir tudo e todos, tornando assim mais breve a vida do próprio planeta? 

Diferente delas, não vivemos pelo coletivo. Sequer as migalhas compartilhamos. Criamos o maldito sistema que nos venceu e que, cedo ou tarde, dará cabo de todos nós. Sem a figura da Rainha-Mãe, mas nesse ritmo, seremos devorados por um Grande-Irmão. Aquele que saudamos sem nem mesmo saber como, quando e onde. Todos saúdem o Grande-Irmão! "Viva! Vivos! Mortos-vivos! Matem! Morram!" 

Arquivo de texto encontrado num dispositivo USB qualquer, no ano de 2042. Pouco antes do "Levante final" do Sistema.

Thursday, August 11, 2022

COSMOS MEDITATIVO 5G

 

Imagem: Google

Tanto era urgente que mais do que de repente os sons das coisas do dia me chegam aos ouvidos de dentro da mente com uma voz profunda e renderizada, numa mensagem cifrada, decodificada e recodificada binariamente em ‘zeros & uns’, gritando que “A medida, meu mano, é meditar; meditar pra não pirar!”. E eu como apenas mais um de todos os muitos vice-trecos do sub-troço, ajuntamento de partículas antes perdidas de poeira cósmica agora materializada nesta imensa pedra à deriva num looping líquido e infinito me pergunto: “Mas como?”

Em pleno século vinte e um, na era pós-malderna, buscar as respostas é a cada momento que passa e ninguém mais sente, perguntar ao Grande Irmão, aquele que de todos sabe o que tudo vê; “Como fazemos isso? Como seguimos em frente com tanto nos puxando pra trás, Oh! Buscador de coisas vãs via satélite?”

E do Além-cúmulo vem o grito digital: “Busca dentro de ti uma razão, teu novo norte guia, Sol que brilha mais que qualquer Super Nova, nas muitas antigas tradições!” Faz uma yoga online; quem sabe uma meditação Zazen em MP3; acessa teu Ori via Wi-Fi; convoca teu Buda usando o Bluetooth; Chama Alá pra um tête-à-tête no Zap; manda aquele meme pra Jesus ou mesmo um e-mail pra Deus”

De nossa parte, em qualquer parte, nestes dias de infernos infames e nada particulares de cada uma das nossas tribos, valha-nos quem ou o que for, nos restará sempre ser bem mais do que crer. Ou quem sabe até tentar ver e crer bem mais em nós do que aquilo que os olhos quase cegos de tantas almas tentam ver.

Nisto refaço todo passo que posso, transformando ideia em ação, na busca dessa tal razão que tantos de nós já parecemos não crer mais existir para resistir e seguir sempre em frente.  

 


Thursday, January 21, 2021

Na falta quem salta é a fé



Cinco da tarde, a cidade pulsa e vive mais e mais acelerada, cada dia mais selvagem, pedra e concreto na selva do cinza que predomina no multicolorido. No ar que cheira à pressa e monóxido de carbono, paira aquela estranha sensação de que as placas e panfletos espalhados por Belhell querem nos dizer alguma coisa, como se houvesse uma mensagem cifrada, descrevendo os fatos que compõem a grande desventura de nossos dias, nesse planetinha azul e subestimado, localizado na borda mais brega da Via Láctea e que gira indefinidamente quer você queira quer não, de estação a estação.
 Olhando ao redor, trezentos e sessenta graus no desespero abundante de sinais e imagens. Placas de trânsito, faixas de pedestre, anúncios nas paredes das lojas; o letreiro na fachada do laboratório da família Beltrano (faça aqui seus exames, é prático e rápido, sei, conta outra); mais uma farmácia naquela esquina, onde o passado já não se encontra mais com o futuro – são tantas por aí e mesmo assim estamos mais doentes a cada dia que passa – PARE; NÃO PENSE; VIVA; SIGA EM FRENTE; CORRA, LOLA, CORRA(!) OU MORRA TENTANDO!
Nesse passo desgovernado onde vamos parar? Pois na parada de ônibus, o que chama  a atenção é um desenho que pouco antes não parecia estar lá: cobrindo a imagem que indica o ponto do transporte público, o desenho de um disco voador, com seu halo de luz abdutor, está pichado de vermelho por sobre o símbolo do coletivo. Uma piada de cunho filosófico? Um sinal do porvir? Uma esperança vã? 
Uma voz rouca e raivosa, então, chama a atenção. Caminhando (ou estaria flutuando?) subindo a Humaitá no sentido da Marquês de Herval,  um sujeito que parece estar borrado na realidade como se percebe, riscado do mapa do cidadão dessa grande antipólis. Com uma imensa barba e o pouco cabelo brancos e desgrenhados,  veste uns andrajos que estão sujos e gastos, mais farrapos que roupas. Apenas mais um dos profetas profanos que moram pelas ruas do bairro; outro desses loucos varridos pela sociedade pra debaixo do tapete dos dias. Coisas da vida, certo?
Por sobre o ombro esquerdo ele carrega uma sacola de estopa, das que se usa para carregar frutas na feira,  e ali  dentro, leva consigo todo o nada que são seus pertences. Na outra mão vai se apoiando em um cabo de vassoura, seu improvisado cajado de viajante. Pobre peregrino no seu passo trôpego rumo ao porvir que é a incerteza do amanhã. Foi andando sem se dar conta de que atravessava a rua mesmo com o sinal verde ainda aceso.
Freadas bruscas de todos os carros que vinham na rua e eram obrigados a desviar repentinamente. Gritos desesperados das pessoas que presenciavam a cena. Mas o homem sequer parecia notar o que acontecia. Parecia mesmo alheio a tudo, como num transe que o levava sempre em frente,  olhando para o alto como um autômato. De repente um ônibus não consegue desviar a tempo e ouço o horrendo som da borracha em atrito contra o asfalto se prolongar. Preferi virar meu rosto de lado e foi quando um forte halo da luz do Sol me cegou por uns instantes...
Não houve batida, nem acidente, nem nada. O tal sujeito não está mais lá e sim no alto do teto da farmácia que ocupa toda a esquina da rua! Todos os presentes contemplamos boquiabertos o fato. Como ele foi parar lá?! O que houve aqui?! Lá, no alto do prédio, ele então abre os braços e salta, como se caindo em um lago ou uma piscina. Espero pelo horrendo som do corpo do homem se espatifando contra o solo e... então, sem razão aparente, lembro-me da figura do disco voador pichado na placa do ponto de ônibus e vejo novamente o halo de luz cegante do Sol.
Tudo durou um microsegundo. Nem sei se todos perceberam mas sei que todos sentem o mesmo desconforto, como se algo sem explicação tivesse acontecido e agora não havia mais sinal do homem, daquele 'tio' que sempre vagava nas tardes quentes da cidade pelas ruas do bairro, vestido com seus farrapos e carregando sua sacola cheia de nada. Ele sumiu, voou, foi carregado pelos ventos do caos que sopram para longe as memórias dos dias que virão...

Monday, October 8, 2018

Com quantos punhos fechados se faz uma revolução?

Galatea of the spheres - Dalí

Era só mais um dia comum em Bellhell, nada de mais mesmo, seu moço, vá por mim! Só é triste perceber que a cada fim de tarde menos crianças brincam nas ruas e há menos gente sentada em frente ao portão, apreciando o vagar do tempo e as coisas que vem e vão. Mas o Outro que é em mim, sempre me sussurra no pensamento, ecoa direto na mente - que também sente! - o porvir da ideia que jaz antes mesmo de ser: Escuta a canção que o vento te sopra, só ela irá te salvar; no horizonte a sombra do inimigo já cresce...

Mudança rápida, no clima da cidade e no ânimo de quem (sobre)vive nela. No céu as nuvens são mar de cinzas. Será a benção da chuva de verão ou os ventos do kaos, que trazem o mal entranhado em cada um que se omite - e assim também permite - o retrocesso aos dias em que éramos uma gente que vive e respira sempre sob a mira? Esses mesmos ventos já sopravam e traziam de volta o cheiro morto dos esqueletos e dos fantasmas que estavam trancados no armário da inglória memória de sessenta e tantos.

No ônibus a caminho do ato - grito isolado contra o porvir horrendo que pode tomar conta de nossas vidas -, a tensão que paira e deixa a realidade mais lenta, vai dando lugar ao brilho estranho do último dos males a ficar preso no jarro daquela que se negou a ser subjugada pelo tirano do Alpha homérico. Elas se reconhecem pelas indumentárias que ostentarão quando chegar a batalha e os sorrisos retornam aos olhares dos que não esqueceram que o demasiado humano ainda há de vencer.

Já em São Brás, nos arredores do mercado - figura clássica e tombada que denuncia os horrores e a decadência de uma memória curta e esquecida - os gritos e canções são milhares. Minas e monas são parte de uma turba que acordou já pronta para resistir. Mas ah! que seria do mundo sem a força que elas demonstram? São todas e muitas e hoje tudo é delas. Brancas e pretas, amarelas e azuis. Lisas e crespas, carecas até! Jovens e velhas, magras e gordas. São uma entre muitas e todas uma só: Gaia mãe-filha da Terra!

Até o clima se rende aos cantares em marcha. O Sol começa a ganhar espaço por entre as nuvens, vazadas pela ponte arco-íris, que levou a chuva para longe dali. Bifrost é o caminho por onde cavalgam as mulheres guerreiras. Valquírias, amazonas, icamiabas... A sombra do inimigo é gigante no horizonte, mas infinito é o desejo delas todas de seguir. De sonhos em punho e bandeiras ao vento, desistir para elas nunca foi uma opção. O lema é o do filme em que herói vira vilão: “Retroceder nunca, render-se jamais!”

Parado em uma das esquinas da José Bonifácio, assisto a todas seguindo em frente. Milhares de cores, de brilhos e vozes; Marias-flores que cantam e resistem aos fortes ventos de um futuro que rosna ameaças. A noite vem caindo e brilham mais os olhos aqui na terra que as estrelas que despontam no kaos longínquo de um céu que continua sendo muito distante...  






Tuesday, September 18, 2018

A injustiça que os cega

Pietá - Emeric Marcier

Nem bem raiou o dia e Bellhell já é uma balbúrdia hostil ao recém desperto, como eu. Berra mecanicamente o despertador, uivam os caminhões de lixo do estacionamento aqui atrás, com suas buzinas de ré ou coisa que o valha e as crianças que chegam à escola aqui em frente ao prédio, gritando e dando risadas (como podem ser tão barulhentas a esta hora da manhã?!).

O nada tênue amarelo do sol matutino que invade o quarto pela janela, ignorando as cortinas blackout, é particularmente torturante para minha hipersensibilidade à luz. Posso soar neurótico – da guerra do existir/resistir no dia após dia –, mas nunca confiei em alguém que é feliz antes das oito da manhã, me julguem.

Já no elevador, ainda letárgico pelo efeito da Areia dos sonhos – Sandman não me trouxe um sonho esta noite –, meu olfato é agredido por um perfume forte que não identifico (nem pretendo), e que causa uma revolução armada em meu estômago ainda vazio. Todos os “bons dias” que recebo pelo caminho, seja do morador que desceu comigo pelo elevador, do porteiro ou da senhora da limpeza que cruzou meu caminho, são respondidos no modo “autômato ad eterno”.

As filas de carros a perder de vista do trânsito na Marquês são a melhor representação do comportamento de “efeito manada” que configura nosso cotidiano no século XXI. Mas há algo de errado na frente da padaria, que deixa parado o rebanho mecânico: viatura da polícia, carro da imprensa, multidão arrebanhada ao redor.

O grito de dor sobrenatural daquela mulher – rasga mortalha da realidade – interrompe o fluxo real do tempo. Cena que desperta fúria e lamúria paralelamente. Abraçada ao menino caído, cercada pelos agentes da lei, que vestem uniformes de batalha e usam as armas do cidadão de bem para fazerem o que bem entendem, mais uma mãe terá que contrariar o fluxo natural da vida.  A senhora deve ser mesmo cega, dona Justiça.

Link ao vivo do repórter para explicar o quê não faz sentido. Pessoas ao redor filmam tudo com o olhar de abutre sedento das câmeras dos smartphones e proferem as mesmas falas de sempre: “Não devia ser coisa que prestasse esse aí”, “Um bandido a menos”, “Da baixada nunca saiu nenhum santo”. Quando ouço tudo aquilo, só consigo pensar que já te pedimos piedade, Senhor, mas as pessoas continuam caretas e cada vez mais covardes.

Enquanto revistam a mochila do garoto, que estava no lugar e hora errados, que correu quando foi ordenado que parasse, e cometeu o imperdoável crime de nascer preto e pobre, encontraram as únicas armas que podem salvar esse país da marcha para o abismo: caneta, lápis e os cadernos da escola.

Desvio minha atenção quando um senhor que sai do meio da multidão passa por mim. Caminhando com auxílio de uma bengala, usa um chapéu de abas largas, roupas todas brancas, com exceção da camisa vermelha que vai por dentro do paletó. Passa ao meu lado e o Outro que há em mim ouve sua voz sussurrada dentro da minha cabeça: “Fique tranquilo que em ano de Badé a justiça não falhará”.

O dia está ensolarado e o céu limpo, mas juro que ouço um trovão. Um arrepio estranho me desce a espinha e toma conta de todo o corpo. Olho para trás e o senhor já não mais é naquela direção. Seguiu e sumiu, com o kaos que rege o que somos todos os dias...







 





Nas asas mágicas dos sonhos

  Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró. "Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!",  dito popula...