Monday, May 21, 2018

Vidas encruzilhadas

Celso Gitahy: Em trânsito

Todos estamos sempre em trânsito. O outro, que é em cada um, está sempre em movimento ainda que parado. A mente vagueia pelos mundos e universos que são os nossos ou não. Será que isso explicaria o que aconteceu com ele quando abalroou o carro?

Há apenas uma lei que rege, desde sempre, o trânsito de Belhell: a lei do mais estúpido. Quantos já não tombaram na guerra infernal que é o tráfego desta cidade? As cores mais comuns são o cinza e o vermelho. 

Como culpar um caminhoneiro que trabalha dezesseis horas por dia, ou mais do que isso, sabe-se lá quantos dias na semana - de sol a sol nem é mais uma questão - por não ter olhado para o retrovisor? Pensamento longe/onde na mulher que ficou em casa com os filhos, contas a pagar, fluxo de vias, rodovias, pedágios, outras contas a pagar, mais uma carreira cheirada para não apagar, de cansaço, ninguém é de aço, ou é?

O rugido furioso do motor velho daquele caminhão prenunciou o choque.Carregado com sacas de cimento, ou coisa que o valha, pesada o suficiente para deixar a carroceria baixa, pendendo para a esquerda. A fumaça com cheiro de morte que sai do escapamento enferrujado, Zéfiro faz entrar pelas janelas do carro, formando uma cortina densa de fumaça negra que sufoca o casal dentro do Pálio.

Não parece injusto que o último cheiro que alguém sentirá em vida seja o de borracha queimada e óleo diesel, diante da quantidade infinita e maravilhosa de perfumes que há? Na encruzilhada de vida e morte da Dr. Freitas com a Senador Lemos três faixas que se encontram em uma curva decidem o destino do casal que estava naquele carro e também do caminhoneiro.

Estranha encruzilhada em que ruas unem-se em um único fluxo, como os veios que se encontram para formar um só grande rio, Estiges. A imagem de Caronte, o barqueiro, me vem à mente enquanto estou atravessando a faixa de (in)segurança quando a cena ocorre. Antecipo o que virá e ergo as mãos, tento empurrar o carro do casal para longe. 

Penso muitas coisa naquele átimo de segundo. "Onde estão meus poderes telecinéticos quando preciso?"; "Não há lugar como o nosso lar."; "Vocês podem voar, porquê eu acredito em fadas."Na Estrada da Fúria ou você luta ou morre." Fecho os olhos, não quero ser mais uma testemunha. O horrível som já será suficiente para causar pesadelos e sonos intranquilos por um bom tempo.  

Então ali, ainda com os olhos fechados, continuo esperando pelo som da colisão. E o silêncio da espera é mais agoniante do que o som que nunca pude ouvir. O Outro, que é testemunha de tudo, segue no terrível transe/trânsito dos dias...   

Saturday, May 12, 2018

O mormaço dos dias

David Daruelle: Dionísio

O Outro, que é cada um de nós, está sempre à espreita. Ele observa as pessoas que vem e vão, de lá para cá. Observa os carros que passam, de cá para lá. Quantos acontecimentos mágicos não passam despercebidos diante de nossos olhos? Tente se conectar com as forças que o cercam no dia-a-dia e verás muito mais do que podes perceber normalmente.

Dia quente em Bellhell é quase redundante. Aquele Sol que te faz suar logo depois de sair do banho; que faz o mormaço subir do asfalto em ondas de calor sufocante. Sigo para o trabalho. São seis quarteirões até a parada de ônibus mais próxima, passando pelo meio da feira da Pedreira. Muitos sons, muitos cheiros, muitas pessoas.

Esperando pelo ônibus, sob o toldo de uma venda qualquer de açaí, uma senhora se aproxima para pedir informação. Ela quer saber que ônibus pode pegar para ir até a catorze de Março. Digo-lhe que ali não há nenhum coletivo que sirva., mas que ela pode andar para a avenida Pedro Miranda e pegar o Pedreira-Nazaré. 

Ela então se afasta depois de um tímido "obrigado". Noto que olha para trás um pouco assustada. Talvez o pedido de informação fosse apenas um pretexto para se afastar do homem que estava ao meu lado e eu sequer havia notado. Um senhor de aparência maltratada e cansada. Barba por fazer e a pele morena envelhecida pelo excesso de sol. Vestia umas roupas gastas e levava consigo uma sacola de estopa cheia de latinhas ou qualquer coisa do tipo. 

Exalava um cheiro rançoso de suor que afastava todos os que estavam esperando pelo ônibus. Falava como se conversasse com quem quisesse ouvi-lo. Dizia que as coisas não eram mais como antes. Que ninguém mais se importa com o "próximo". Tentou, mais de uma vez, puxar conversa com duas mocinhas que vestiam uniforme, provavelmente voltando para casa depois da aula. Todos preferiam não notá-lo. Era nada. Era ninguém.

Me olhou e então pude perceber algo diferente nele. Uma aura estranha que parecia refletir a luz do Sol. Apertei bem os olhos e balancei a cabeça, tentando entender o que via. Saber se era real. O homem parecia estar brilhando e ficando cada vez mais translúcido. Sorriu para mim e disse: "As pessoas nem sabem mais o que fazer quando alguém pede ajuda".

Foi então que ele andou para o meio da rua movimentada. Fez sinal para que o ônibus parasse, mas ficou parado em frente ao veículo. Tudo pareceu transcorrer com uma lentidão não-natural. Mal pude perceber o som da freada brusca do Satélite-Felipe Patroni misturado aos gritos de todos os que estavam na parada.

O motorista desceu desesperado. Pôs as mãos na cabeça e começou a tentar se justificar dizendo que não tinha como frear a tempo. Uma multidão se formou no local. Pessoas chorando por ter presenciado a cena apontando a culpa uns dos outros. Dizendo o que deveria ter sido feito ou não. Os menos sensíveis sacavam seus smartphones e filmavam tudo, para quem sabe, mais tarde, compartilhar nos grupos de whatsapp dos amigos ou da família.

Enquanto eu apenas olhava para o alto, vi o rosto sorridente do homem sendo levado pelo vento até desaparecer. Subia com as calorentas ondas do mormaço, em direção ao Sol. E o caos cotidiano segue, indiferente... 



  

Nas asas mágicas dos sonhos

  Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró. "Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!",  dito popula...