Thursday, January 21, 2021

Na falta quem salta é a fé



Cinco da tarde, a cidade pulsa e vive mais e mais acelerada, cada dia mais selvagem, pedra e concreto na selva do cinza que predomina no multicolorido. No ar que cheira à pressa e monóxido de carbono, paira aquela estranha sensação de que as placas e panfletos espalhados por Belhell querem nos dizer alguma coisa, como se houvesse uma mensagem cifrada, descrevendo os fatos que compõem a grande desventura de nossos dias, nesse planetinha azul e subestimado, localizado na borda mais brega da Via Láctea e que gira indefinidamente quer você queira quer não, de estação a estação.
 Olhando ao redor, trezentos e sessenta graus no desespero abundante de sinais e imagens. Placas de trânsito, faixas de pedestre, anúncios nas paredes das lojas; o letreiro na fachada do laboratório da família Beltrano (faça aqui seus exames, é prático e rápido, sei, conta outra); mais uma farmácia naquela esquina, onde o passado já não se encontra mais com o futuro – são tantas por aí e mesmo assim estamos mais doentes a cada dia que passa – PARE; NÃO PENSE; VIVA; SIGA EM FRENTE; CORRA, LOLA, CORRA(!) OU MORRA TENTANDO!
Nesse passo desgovernado onde vamos parar? Pois na parada de ônibus, o que chama  a atenção é um desenho que pouco antes não parecia estar lá: cobrindo a imagem que indica o ponto do transporte público, o desenho de um disco voador, com seu halo de luz abdutor, está pichado de vermelho por sobre o símbolo do coletivo. Uma piada de cunho filosófico? Um sinal do porvir? Uma esperança vã? 
Uma voz rouca e raivosa, então, chama a atenção. Caminhando (ou estaria flutuando?) subindo a Humaitá no sentido da Marquês de Herval,  um sujeito que parece estar borrado na realidade como se percebe, riscado do mapa do cidadão dessa grande antipólis. Com uma imensa barba e o pouco cabelo brancos e desgrenhados,  veste uns andrajos que estão sujos e gastos, mais farrapos que roupas. Apenas mais um dos profetas profanos que moram pelas ruas do bairro; outro desses loucos varridos pela sociedade pra debaixo do tapete dos dias. Coisas da vida, certo?
Por sobre o ombro esquerdo ele carrega uma sacola de estopa, das que se usa para carregar frutas na feira,  e ali  dentro, leva consigo todo o nada que são seus pertences. Na outra mão vai se apoiando em um cabo de vassoura, seu improvisado cajado de viajante. Pobre peregrino no seu passo trôpego rumo ao porvir que é a incerteza do amanhã. Foi andando sem se dar conta de que atravessava a rua mesmo com o sinal verde ainda aceso.
Freadas bruscas de todos os carros que vinham na rua e eram obrigados a desviar repentinamente. Gritos desesperados das pessoas que presenciavam a cena. Mas o homem sequer parecia notar o que acontecia. Parecia mesmo alheio a tudo, como num transe que o levava sempre em frente,  olhando para o alto como um autômato. De repente um ônibus não consegue desviar a tempo e ouço o horrendo som da borracha em atrito contra o asfalto se prolongar. Preferi virar meu rosto de lado e foi quando um forte halo da luz do Sol me cegou por uns instantes...
Não houve batida, nem acidente, nem nada. O tal sujeito não está mais lá e sim no alto do teto da farmácia que ocupa toda a esquina da rua! Todos os presentes contemplamos boquiabertos o fato. Como ele foi parar lá?! O que houve aqui?! Lá, no alto do prédio, ele então abre os braços e salta, como se caindo em um lago ou uma piscina. Espero pelo horrendo som do corpo do homem se espatifando contra o solo e... então, sem razão aparente, lembro-me da figura do disco voador pichado na placa do ponto de ônibus e vejo novamente o halo de luz cegante do Sol.
Tudo durou um microsegundo. Nem sei se todos perceberam mas sei que todos sentem o mesmo desconforto, como se algo sem explicação tivesse acontecido e agora não havia mais sinal do homem, daquele 'tio' que sempre vagava nas tardes quentes da cidade pelas ruas do bairro, vestido com seus farrapos e carregando sua sacola cheia de nada. Ele sumiu, voou, foi carregado pelos ventos do caos que sopram para longe as memórias dos dias que virão...

Nas asas mágicas dos sonhos

  Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró. "Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!",  dito popula...