Saturday, May 12, 2018

O mormaço dos dias

David Daruelle: Dionísio

O Outro, que é cada um de nós, está sempre à espreita. Ele observa as pessoas que vem e vão, de lá para cá. Observa os carros que passam, de cá para lá. Quantos acontecimentos mágicos não passam despercebidos diante de nossos olhos? Tente se conectar com as forças que o cercam no dia-a-dia e verás muito mais do que podes perceber normalmente.

Dia quente em Bellhell é quase redundante. Aquele Sol que te faz suar logo depois de sair do banho; que faz o mormaço subir do asfalto em ondas de calor sufocante. Sigo para o trabalho. São seis quarteirões até a parada de ônibus mais próxima, passando pelo meio da feira da Pedreira. Muitos sons, muitos cheiros, muitas pessoas.

Esperando pelo ônibus, sob o toldo de uma venda qualquer de açaí, uma senhora se aproxima para pedir informação. Ela quer saber que ônibus pode pegar para ir até a catorze de Março. Digo-lhe que ali não há nenhum coletivo que sirva., mas que ela pode andar para a avenida Pedro Miranda e pegar o Pedreira-Nazaré. 

Ela então se afasta depois de um tímido "obrigado". Noto que olha para trás um pouco assustada. Talvez o pedido de informação fosse apenas um pretexto para se afastar do homem que estava ao meu lado e eu sequer havia notado. Um senhor de aparência maltratada e cansada. Barba por fazer e a pele morena envelhecida pelo excesso de sol. Vestia umas roupas gastas e levava consigo uma sacola de estopa cheia de latinhas ou qualquer coisa do tipo. 

Exalava um cheiro rançoso de suor que afastava todos os que estavam esperando pelo ônibus. Falava como se conversasse com quem quisesse ouvi-lo. Dizia que as coisas não eram mais como antes. Que ninguém mais se importa com o "próximo". Tentou, mais de uma vez, puxar conversa com duas mocinhas que vestiam uniforme, provavelmente voltando para casa depois da aula. Todos preferiam não notá-lo. Era nada. Era ninguém.

Me olhou e então pude perceber algo diferente nele. Uma aura estranha que parecia refletir a luz do Sol. Apertei bem os olhos e balancei a cabeça, tentando entender o que via. Saber se era real. O homem parecia estar brilhando e ficando cada vez mais translúcido. Sorriu para mim e disse: "As pessoas nem sabem mais o que fazer quando alguém pede ajuda".

Foi então que ele andou para o meio da rua movimentada. Fez sinal para que o ônibus parasse, mas ficou parado em frente ao veículo. Tudo pareceu transcorrer com uma lentidão não-natural. Mal pude perceber o som da freada brusca do Satélite-Felipe Patroni misturado aos gritos de todos os que estavam na parada.

O motorista desceu desesperado. Pôs as mãos na cabeça e começou a tentar se justificar dizendo que não tinha como frear a tempo. Uma multidão se formou no local. Pessoas chorando por ter presenciado a cena apontando a culpa uns dos outros. Dizendo o que deveria ter sido feito ou não. Os menos sensíveis sacavam seus smartphones e filmavam tudo, para quem sabe, mais tarde, compartilhar nos grupos de whatsapp dos amigos ou da família.

Enquanto eu apenas olhava para o alto, vi o rosto sorridente do homem sendo levado pelo vento até desaparecer. Subia com as calorentas ondas do mormaço, em direção ao Sol. E o caos cotidiano segue, indiferente... 



  

2 comments:

  1. Ahh... manda mais esperando pelo próximo, eis que nasce a pedreira sob contos e crônicas, se ray bradburry escreveu cronicas marcianas sem ir a marte, porque não deveria ter crônicas sob(re) a Pedreira?! Belo texto, seguimos...

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  2. Porra, cara... por um instante eu viajei pra esse local que vc descreveu...fui por um instante para o mesmo tempo... enxerguei as pessoas, vi elas compartilhando suas fotos, filmagens da tragédia... vi o sorriso do homem atropelado sumir no vento tb...senti o calor daquele dia, senti que tudo se segue normalmente, pessoas somem antes mesmo de morrerem, como esse que deu o último brilho da sua áurea pra mim, pelos teus olhos, meu amigo...

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