A Lua cheia desponta dourada e brilhante, espelho mágico no céu de uma noite que apenas começou e já estás aí, hein Mada? No ‘posto de vigia’, no teu ponto de trabalho que é uma parada de ônibus qualquer e que fica numa das esquinas da avenida Marquês de Herval - alguma vez já paraste pra pensar quem teria sido este tal marquês? Ah, que se foda! - , vestindo somente a jaqueta aberta com um sutiã vermelho, que chama atenção para teus peitos, e aquela a saia preta de couro que expõe tuas coxas grossas de pele morena, ali estás, esperando pelo primeiro da noite. O teu sexo e suor, tuas lágrimas e lascas de honra trocados por moedas, isto que foi a tua fuga pra quem não via outra escapatória para a seca da natureza e para a violência dos homens, na tua agora distante terra natal no nordeste.
E ainda vem uns desgraçados hipócritas chamarem de “vida fácil” desde os tempos bíblicos! Rameira, Jezebel, meretriz, quantas já não foram as palavras que usaram para te descrever enquanto apontavam o dedo e na outra mão seguravam a pedra que te arremessariam depois, podendo eles ou não, já que te julgavam pelo que mostravam uns aos outros, mas nunca por quem eles eram ou sentiam de fato, como aqueles irmãos que saem dos templos e sempre dão uma passadinha rápida aqui contigo. Ou os mesmos sujeitos pais de família que levam as filhas à escola e passeiam com o cachorro, mas arranjam um tempo pra uma ‘rapidinha em pé mesmo’, num canto escura do canteiro central.
A noite avança e hoje tua pele não teve nenhum contato a não ser com o do sereno de uma chuva fraca que insiste em não cair de vez, dependendo de para onde sopra o vento. Os farois dos carros e motos passam, amarelos ou azuis, deixando um rastro fantasmagórico na treva que antecede algo ruim. Sentes isso nas tuas entranhas. Teu instinto ancestral - muitos chamam de intuição - vem de berço, e sempre te fez perceber que o que ainda acabará com este mundo são aqueles que não apenas não se importam uns com os outros, mas que tem propósitos abusivos. Dito, sentido e feito: o maldito carro de uns que deviam servir e proteger se aproxima, com os faróis baixos e as luzes do giroflex apagadas. Qual bolsa terás que abrir desta vez pra que não te incomodem, não é mesmo?
Uma dupla de vermes vestindo uniformes, distintivos e armas. O desgraçado do banco do carona desce e te manda entrar com ele no banco de trás. Não vai demorar nadinha, amor, já sabes o que tem que fazer, ele diz isso enquanto solta a fivela do cinto e abre a braguilha da calça. O outro pulha tem um sorriso nojento no canto da boca quando diminui as luzes internas da viatura e começa a filmar com o flash da câmera do smartphone aceso. Se eles soubessem o que viria… ah, Mada, eles nunca teriam feito isso! Agora entendemos o porquê de tanto ódio e desprezo que Madame Lux tem pelos humanos! Por essa corja que Deus criou do alto de Sua infinita sabedoria.
Mal encostas na mão do maldito e ele começa a ‘secar’; derreter e ser sugado enquanto definha e se esvai feito areia numa ampulheta. Em pânico o outro sujeito tenta sacar a arma, mas é tarde demais. Seguras a mão dele e o efeito é o mesmo: um grito silencioso escapa dos rostos deles e suas almas são sugadas enquanto o corpo definha, deixando apenas os uniformes. Cascas vazias das almas pútridas enviadas para Ela. No princípio não acreditastes quando a Madame te propôs o trato. Te dando o poder de se livrar da violência em troca de uma parte destas almas vazias. Mas quando Madame Lux te marcou com a tatuagem da Fruta Mordida no ombro direito, aquela energia que fluiu pelo teu corpo te fez sentir que seria assim dali em diante.
Deixas o lugar sem chamar atenção e o mais rápido possível. Um certo cansaço vem, acompanhado de um calor na tatuagem - marca de Madame Lux - que parece até brilhar na tua pele depois que o ‘toque’ acontece. Quantos já foram enviados? Quantos ainda restam pra que o trato acabe? Pouco importa, já que sabes que uma hora estarás livre de vez. Teus ancestrais já te disseram e fizeram sentir que logo voltarás para casa, Mada. Mas ainda lamentas que, ‘sin la ternura’ estamos todos fadados a um final doloroso. Vai e sucubizante vaga pelas noites .