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Celso Gitahy: Em trânsito |
Todos estamos sempre em trânsito. O outro, que é em cada um, está sempre em movimento ainda que parado. A mente vagueia pelos mundos e universos que são os nossos ou não. Será que isso explicaria o que aconteceu com ele quando abalroou o carro?
Há apenas uma lei que rege, desde sempre, o trânsito de Belhell: a lei do mais estúpido. Quantos já não tombaram na guerra infernal que é o tráfego desta cidade? As cores mais comuns são o cinza e o vermelho.
Como culpar um caminhoneiro que trabalha dezesseis horas por dia, ou mais do que isso, sabe-se lá quantos dias na semana - de sol a sol nem é mais uma questão - por não ter olhado para o retrovisor? Pensamento longe/onde na mulher que ficou em casa com os filhos, contas a pagar, fluxo de vias, rodovias, pedágios, outras contas a pagar, mais uma carreira cheirada para não apagar, de cansaço, ninguém é de aço, ou é?
Como culpar um caminhoneiro que trabalha dezesseis horas por dia, ou mais do que isso, sabe-se lá quantos dias na semana - de sol a sol nem é mais uma questão - por não ter olhado para o retrovisor? Pensamento longe/onde na mulher que ficou em casa com os filhos, contas a pagar, fluxo de vias, rodovias, pedágios, outras contas a pagar, mais uma carreira cheirada para não apagar, de cansaço, ninguém é de aço, ou é?
O rugido furioso do motor velho daquele caminhão prenunciou o choque.Carregado com sacas de cimento, ou coisa que o valha, pesada o suficiente para deixar a carroceria baixa, pendendo para a esquerda. A fumaça com cheiro de morte que sai do escapamento enferrujado, Zéfiro faz entrar pelas janelas do carro, formando uma cortina densa de fumaça negra que sufoca o casal dentro do Pálio.
Não parece injusto que o último cheiro que alguém sentirá em vida seja o de borracha queimada e óleo diesel, diante da quantidade infinita e maravilhosa de perfumes que há? Na encruzilhada de vida e morte da Dr. Freitas com a Senador Lemos três faixas que se encontram em uma curva decidem o destino do casal que estava naquele carro e também do caminhoneiro.
Estranha encruzilhada em que ruas unem-se em um único fluxo, como os veios que se encontram para formar um só grande rio, Estiges. A imagem de Caronte, o barqueiro, me vem à mente enquanto estou atravessando a faixa de (in)segurança quando a cena ocorre. Antecipo o que virá e ergo as mãos, tento empurrar o carro do casal para longe.
Penso muitas coisa naquele átimo de segundo. "Onde estão meus poderes telecinéticos quando preciso?"; "Não há lugar como o nosso lar."; "Vocês podem voar, porquê eu acredito em fadas."Na Estrada da Fúria ou você luta ou morre." Fecho os olhos, não quero ser mais uma testemunha. O horrível som já será suficiente para causar pesadelos e sonos intranquilos por um bom tempo.
Então ali, ainda com os olhos fechados, continuo esperando pelo som da colisão. E o silêncio da espera é mais agoniante do que o som que nunca pude ouvir. O Outro, que é testemunha de tudo, segue no terrível transe/trânsito dos dias...