Monday, July 29, 2024

Intuição ancestral & almas vazias



Retrato de Nina Hard (1921), Ernst Ludwig Krichner
           

          A Lua cheia desponta dourada e brilhante, espelho mágico no céu de uma noite que apenas começou e já estás aí, hein Mada? No ‘posto de vigia’, no teu ponto de trabalho que é uma parada de ônibus qualquer e que fica numa das esquinas da avenida Marquês de Herval - alguma vez já paraste pra pensar quem teria sido este tal marquês? Ah, que se foda! - , vestindo somente a jaqueta aberta com um sutiã vermelho, que chama atenção para teus peitos, e aquela a saia preta de couro que expõe tuas coxas grossas de pele morena, ali estás, esperando pelo primeiro da noite. O teu sexo e suor, tuas lágrimas e lascas de honra trocados por moedas, isto que foi a tua fuga pra quem não via outra escapatória para a seca da natureza e para a violência dos homens, na tua agora distante terra natal no nordeste. 

E ainda vem uns desgraçados hipócritas chamarem de “vida fácil” desde os tempos bíblicos! Rameira, Jezebel, meretriz, quantas já não foram as palavras que usaram para te descrever enquanto apontavam o dedo e na outra mão seguravam a pedra que te arremessariam depois, podendo eles ou não, já que te julgavam pelo que mostravam uns aos outros, mas nunca por quem eles eram ou sentiam de fato, como aqueles irmãos que saem dos templos e sempre dão uma passadinha rápida aqui contigo. Ou os mesmos sujeitos pais de família que levam as filhas à escola e passeiam com o cachorro, mas arranjam um tempo pra uma ‘rapidinha em pé mesmo’, num canto escura do canteiro central.  

A noite avança e hoje tua pele não teve nenhum contato a não ser com o do sereno de uma chuva fraca que insiste em não cair de vez, dependendo de para onde sopra o vento. Os farois dos carros e motos passam, amarelos ou azuis, deixando um rastro fantasmagórico na treva que antecede algo ruim. Sentes isso nas tuas entranhas. Teu instinto ancestral - muitos chamam de intuição - vem de berço, e sempre te fez perceber que o que ainda acabará com este mundo são aqueles que não apenas não se importam uns com os outros, mas que tem propósitos abusivos. Dito, sentido e feito: o maldito carro de uns que deviam servir e proteger se aproxima, com os faróis baixos e as luzes do giroflex apagadas. Qual bolsa terás que abrir desta vez pra que não te incomodem, não é mesmo?

Uma dupla de vermes vestindo uniformes, distintivos e armas. O desgraçado do banco do carona desce e te manda entrar com ele no banco de trás. Não vai demorar nadinha, amor, já sabes o que tem que fazer, ele diz isso enquanto solta a fivela do cinto e abre a braguilha da calça. O outro pulha tem um sorriso nojento no canto da boca quando diminui as luzes internas da viatura e começa a filmar com o flash da câmera do smartphone aceso. Se eles soubessem o que viria… ah, Mada, eles nunca teriam feito isso! Agora entendemos o porquê de tanto ódio e desprezo que Madame Lux tem pelos humanos! Por essa corja que Deus criou do alto de Sua infinita sabedoria.

Mal encostas na mão do maldito e ele começa a ‘secar’; derreter e ser sugado enquanto definha e se esvai feito areia numa ampulheta. Em pânico o outro sujeito tenta sacar a arma, mas é tarde demais. Seguras a mão dele e o efeito é o mesmo: um grito silencioso escapa dos rostos deles e suas almas são sugadas enquanto o corpo definha, deixando apenas os uniformes. Cascas vazias das almas pútridas enviadas para Ela. No princípio não acreditastes quando a Madame te propôs o trato. Te dando o poder de se livrar da violência em troca de uma parte destas almas vazias. Mas quando Madame Lux te marcou com a tatuagem da Fruta Mordida no ombro direito, aquela energia que fluiu pelo teu corpo te fez sentir que seria assim dali em diante.

Deixas o lugar sem chamar atenção e o mais rápido possível. Um certo cansaço vem, acompanhado de um calor na tatuagem - marca de Madame Lux - que parece até brilhar na tua pele depois que o ‘toque’ acontece. Quantos já foram enviados? Quantos ainda restam pra que o trato acabe? Pouco importa, já que sabes que uma hora estarás livre de vez. Teus ancestrais já te disseram e fizeram sentir que logo voltarás para casa, Mada. Mas ainda lamentas que, ‘sin la ternura’ estamos todos fadados a um final doloroso. Vai e sucubizante vaga pelas noites .   

    





Tuesday, July 16, 2024

Lapsos de poesia dali em diante

Navio com velas de borboletas - Salvador Dalí


É assim mesmo, hein John? Fora de si, assim mesmo, tipo Dalí - com este & todos os trocadilhos possíveis, sejam eles permitidos e percebidos até aqui ou não! - caminhante trôpego e feliz com tão pouco mesmo. Se ao menos alguém tivesse dito que crescer é assim, esse pesadelo de ser adulto até o fim, preferiria mil vezes ter continuado criança, quandonde eu ao menos pensava que sabia que todos os dias trariam descobertas, ao invés deste abafado enfado da rotina, que destroe toda a vontade de seguir em frente, isso é, quando há vontade de sair do lugar.

Vai e segue, John, saltinbanca figura que comemora um ciclo lunar inteiro sem o menor incidente, sem ao menos ter perdido um só fragmento de si, (tá bem, de nós, vá lá) ainda que os sonhos tenham sido raros e os pesadelos tenham se mostrado mais constantes e palpáveis. Ora, mas pense só, se as Ninfas influenciam poetas e escritores em troca da energia do Sonhar, porque não haveriam de fazer essa troca e acabar por providenciar pesadelos? Não é assim? Pra mim parece muito lógico e tão óbvio que mesmo sendo mais louco do que me sinto fica bem fácil de compreender. 

E o que foi que controlou o tal "mal que acomete a frágil casa de demônios" que é o nosso corpo e mente, do qual fala o nem sempre tão bendito livro sagrado tão vendido e reverenciado desde tempos imemoriais? Nossos 'feijões mágicos', John! Pílulas de doses diárias de poesia acompanhadas de uma água salgada com lágrimas da alegria de poder pensar em ser como os que lutavam com as palavras de maneira vã e proposital. 

Se o Destino nos quis assim e teve a locura de querer mais poetas e loucos soltos pelas ruas, sonhando em transformar a realidade descrevendo as cores, sensações, os cheiros e os sons, desta mágica forma que é a escrita, então que assim seja! Lutaremos, seguiremos e mesmo quando estivermos caídos, continuaremos lutando e, quando por fim tivermos sido derrotados, ainda deixaremos escrito o legado aos que sonham. E assim a vida voltará a fazer bem mais sentido e por isso não desistirás, John. Nem me, myself or we.

E quem me fez saber & sentir isso? Foi aquela frágil e linda borboleta amarela, que nos soprou ao ouvido que "se tudo sempre fizesse sentido, não haveria mais porquê buscar a felicidade em lugar ou texto algum". E isso foi hoje, logo pela manhã, quando o Sol começava a raiar morno e dourado.  

Monday, February 26, 2024

Nas asas mágicas dos sonhos

 

Mariposa-bruxa (Ascalapha odorata) – Imagem Canva Pró.

"Eu não acredito em bruxas, mas que elas existem, existem!", 

dito popular castelhano 


Elas sempre preferiram viajar à noite, longe dos olhares de incompreensão e de julgamento

Guiadas pela luz do Espelho da Deusa-mãe e saltando pelos rastros das estrelas

Belas e velozes tomam as formas de criaturas da noite que são  protegidas pelas sombras

Não voam em vassouras porque tem as asas da brisa noturna


Transmorfas elas mudam quando precisam, ora pássaros, noutras insetos

Mas sempre ocultas pela penumbra da noite, entre sonhos e ilusões

Então como, Elvina, acabastes perdida e presa, pobre borboleta-bruxa da noite? 

Fostes traída pelo inverno, não é assim? Os ventos mudam e as nuvens encobrem Luna e sua luz guia das crias da noite


Frágil e bela, acabou perdendo-se e pousou na parede de um quarto qualquer

E se esse for o lar de um dos que não enxerga a magia das coisas e queima o que devia encantá-lo?

Dos que estão presos no horror das crenças limitadas, que julgam e discriminam aquilo que não entendem


Se matam uns aos outros em nome daquilo que dizem ser deus, o que não farão contigo, filha da natureza?

Sei que ainda podes ouvir os gritos das milhares de irmãs que foram caçadas 

Que morreram queimadas nas fogueiras do ódio e da incompreensão de uma fé inventada e manipulada


A luz do quarto é acesa e agora pode ser tarde demais para ti

Um sujeito adulto para no umbral da porta do cômodo e olha fixamente para ti

Estás pousada e inerte, com tuas asas marrons contrastando com o branco da parede

O sujeito se aproximando a passos lentos, ergue os braços com as mãos espalmadas em tua direção


Sei que sentes o impulso de voar e fugir, mas também tem aquela aura emanando dele

A sensação de que ele não te fará mal algum caso venha a tê-la entre as mãos

E assim acontece quando tentas voar e ele apenas te segura tentando não machucá-la


Ele então caminha em direção à janela mais próxima do quarto, que está aberta e mostra o céu noturno que enfim parece estar abrindo, revelando as estrelas

Prestes a abrir as mãos e te soltar para o ar livre do manto da noite, podes sentir que ali há um dos que ainda veem e creem na magia que há nas coisas 

Um viajante dos sonhos, daqueles que fazem da jornada da imaginação um seu verdadeiro ofício 


Já livre no céu noturno, ouves ele dizer num tom de voz baixo e suave “voa, menina, voa; vai ficar tudo bem”

Teu bater de asas poderia causar um tsunami no outro lado do mundo, ao invés disso trará bons sonhos a quem te libertou e todos aqueles que ainda sentem a magia dos dias

Quem sabe não os encontre vagando pelo Sonhar e acabe inspirando histórias, canções ou mesmo poemas como este


J.K. Coutinho


 


 


Thursday, February 22, 2024

O medo do escuro em si

   
créditos da imagem: https://brasilescola.uol.com.br/fisica/buraco-minhoca.htm

    Da escuridão viemos ao nascer e pra lá voltaremos ao morrer. Afinal o escuro é o estado natural de tudo. Não fosse por esse satélite natural que faz as vezes de espelho refletir a luz do sol - que para muitos já foi ou ainda é um tipo de deus - sequer haveria diferença entre dia e noite. Seria sempre noite, assim como acontece no espaço infinito, a tal fronteira final. 
    E assim é a vida. Então porque tanto medo do escuro? Depois de tudo, comecei a entender melhor que esse medo é, na verdade, daquilo que o escuro pode acabar mostrando, e não do que possa estar escondido e vivendo lá.
   Outra noite comum do inverno amazônico, sabe como é, chuva fina e persistente. Então veio aquela náusea e a estranha sensação que arrepiou todos os pelos do meu corpo. Justo no mesmo momento em que tive um dos 'episódios' em que perco pedaços de mim, alguns fragmentos da minha memória. Coincidência? 
    Logo cedo vi no jornal algo sobre um fenômeno astronômico. Uma chuva de estrelas cadentes ou coisa que o valha. Então houve aquele 'pulso' que atingiu a cidade inteira e fez as luzes de Belém piscarem por uma fração de segundos. Mais uma lufada de vento que estremece as janelas e as paredes das casa. Deitei pra dormir, logo depois do episódio. Sonhei com uma lasca de estrela caindo do céu. 
    No dia seguinte teve aquilo: o bendito buraco que se abriu no asfalto, bem em frente à sorveteria que fica ao lado do condomínio onde moro. Um desses muitos buracos bem comuns que aparecem por toda a cidade nessa época de chuvas. O típico "buraco de engolir carro", como disse certa vez minha esposa. Sabe como é, aquele buraco que parece continuar crescendo e engolindo todo tipo de entulho que as pessoas colocam nele para sinalizar aos transeuntes que ali há um buraco.
    Mas algo ali me pareceu estranho quando passei ao lado pela primeira vez. Estava à caminho da farmácia. Era como se a escuridão desse buraco quisesse tragar tudo ao redor. E veio, então, aquela vontade bizarra de descer e ver até onde ia essa cratera de uma escuridão fosca. Poço sem fundo; buraco de minhoca; rasgo entre os universos; Túnel entre dimensões de tempo e espaço.
    Parado ao lado do buraco, com os olhos fixos no vazio. Mais um episódio em que me perco dentro de mim. Vou lá e pulo de uma vez. Alice caindo na toca do Coelho Branco. Dorothy tragada pelo furacão. Salto de Fé da ponta do mundo. Caindo, caindo, caindo. Não vejo nem ouço mais nada. Também não há cheiro algum. O todo é aquela escuridão e silêncio ao redor. Já não me sei mais. De volta ao estado natural das coisas não há mais porquê temer as ou o que há por trás delas.   


J. K. Coutinho
      
   
    
       
   

Intuição ancestral & almas vazias

Retrato de Nina Hard (1921), Ernst Ludwig Krichner                       A Lua cheia desponta dourada e brilhante, espelho mágico no céu de...